Testamento

Usem os poucos cabelos que me restam, se é que ainda restará algum, mas com a condição de deixar que fiquem despenteados de vez em quando. Meu cérebro, se alguém quiser, faça bom uso, mas aconselho uma faxina, tirando os curto circuitos e o entulho de informações desnecessárias e preocupações sem sentido armazenadas. Coloquem, por favor, os olhos em alguém que ama as flores, as manhãs e as crianças, mas que saiba encarar as doenças, a miséria e a podridão, senão o resto fica alienado. As orelhas e ouvidos podem ser usados, sim, mas fica proibido ouvir pagode e fofoca. Quanto ao nariz, dando uma ajeitadinha, quem sabe quebre um galho, mas, se for possível, não o coloquem em alguém que gosta de torcê-lo pra qualquer coisa; sabem como é: aprendeu a ser humilde com a experiência. Ah! Os lábios: se for pra não mais beijar, nada feito, nem para tomar café com leite e açucar. Língua e cordas vocais para quem souber cantar, pois assim me livrarei de uma grande frustração.

Meu ingênuo e idiota coração, que continue batendo no peito de quem tem sonhos, mas se conseguir acreditar menos, vai sofrer menos. Mas nada de ficar frio, pois frio não merece bater. Se é verdade que o amor fica guardado no coração, é bom avisar antes para que ninguém queira devolvê-lo depois ou jogar o amor fora. Meu estômago, só para quem gosta de comidas bem leves. Por nada, não, mas se for para quem exagera como eu, não vai adiantar muito transplantar. O pulmão, de preferência, para alguém que respire fundo e que goste de cheiro de mato. Fígado, rins, pâncreas e tudo que restar, distribuam para quem precisa e que queira cuidar ao menos um pouquinho. É um pouco de negócio, sim: eu dôo, mas o receptador dá uma cuidadinha para compensar.

As pernas, melhor não para jogador de futebol, pois não quero acabar com a carreira de ninguém. Até ouso pedir: as pernas para quem gosta de areia da praia, de água batendo nos pés e estes deixando rastros, mas indo para frente. Quanto às mãos, imploro, a alguém que saiba desenhar mais do que uma árvore, mas, principalmente, que faça todos os carinhos que fiz. E os que eu não fiz.

Depois, deixem que o vento leve a alma para soprar onde quiser. E, de vez em quando, lembrem de mim e riam.