Roscovo

Na primeira vez se atrapalhou toda e não sabia o que fazer. Na segunda, ficou do lado errado e eu, abestalhado, segurando a porta. Depois se acostumou. Até que um dia não se agüentou: “Ah! Você abre a porta do carro pra gente por gentileza, pensei que estivesse estragada”. Como não tinha argumentos para rebater, mudei de assunto. Aprendi com o tempo e descobri que é muito fácil e deixa as pessoas lisonjeadas: abrir a porta do carro para elas. Não somente para as mulheres, embora para elas seja muito mais charmoso e prazeroso, mas para qualquer pessoa que saia com você.

Pois é, essa moça, amiga minha, por não estar acostumada, com sua peculiar simplicidade, admirou-se que existem pessoas fora da literatura e do cinema adeptas do pequeno gesto.

Simplicidade, aliás, ela tem de sobra: gosta de música e entende de muitos ritmos, mas clássicos, ai, ai, ai. Dia desses, num concerto, queria sair na metade para fumar. E por pouco não saiu. Vinho, só doce e, de preferência, gelado, que toma em cristais Cica. Comida um nadinha mais sofisticada, já se acostumou, mas o basicamente trivial ainda é a melhor pedida. Isso não depõe contra ela, muito pelo contrário, pois é solidária, inteligente, trabalhadora e sempre bem disposta e seu modo de ser acaba conquistando as pessoas. Seu bom humor a faz rir do apelido recebido do namorado: Roscovo. Arroz com ovo, explicando para quem nunca comeu esse prato russo.

Lembrei-me dela ao acompanhar as notícias nos últimos tempos sobre a escassez de comida no mundo, aliás, sentida diretamente no bolso. Ir ao supermercado já se transformou num exercício de masoquismo, pois não me recordo de alguma vez ter me assustado com o preço do arroz ou do feijão, e agora acontece cada vez mais. A situação é assustadora, mas, o que mais assusta é que isso estava previsto há muito, pois a combinação: aumento da população mais pobre, centralização da riqueza e globalização da pobreza só poderia dar nisso.

Quem diria, minha amiga virou uma pessoa sofisticada! O que o mundo não faz com as pessoas. Deverá se sofisticar mais, pois, a continuar assim, teremos que comer arroz com palitos. Não, não os hashis japoneses: de dente mesmo, chicamente espetando grão por grão para demorar mais.