"Reminiscências Ciclísticas" =Crônica=

Ontem eu comprei uma bicicleta. “Grande coisa...” aposto que muita gente pensará. Mas para mim foi importante comprar a bicicleta e andar nela por muitos quilômetros. Comecei a matar um pouco das saudades de minha juventude. Da época em que eu vivia sobre uma delas e rodava minha Belo Horizonte inteira, sempre em alta velocidade e nunca com freios, que eram coisa de maricas. Frear era na sola do sapato e olhe lá. Geralmente dava tempo de parar. Geralmente.

Claro que sendo um jovem normal, cometi muitas loucuras próprias da mocidade. A pior delas, que até hoje me causa arrepios, eu não repetiria nem por muitos milhões de dólares: eu e mais uma cambada de colegas de ginásio no Colégio Marconi saíamos da “boate” em que estudávamos pedalando desesperadamente até a avenida Amazonas. Na avenida pedalávamos a ponto de não mais sentir os pedais e aí nos preparávamos para o “grande número“ suicida, que era pular para o bagageiro, ficar em pé sobre ele, soltar as mãos, esticar os braços e fazer a bicicleta dar umas “quebadas”, rebolando avenida abaixo. A exibição terminava nas proximidades da praça Raul Soares, quando tínhamos que pular de volta no banco, pegar o guidom, e contornar a praça com o pedal direito tirando faíscas do chão. Cometi essa loucura até o dia em que sonhei que havia caído e quebrado o pescoço. Como meus sonhos costumavam ser premonitórios, parei de vez. Hoje em dia eu moeria de pancadas um filho meu que fizesse uma coisa dessas, mas meu pai nunca ficou sabendo.

Uma ocasião em que meu pai não apenas ficou sabendo, mas como também nos pegou em flagrante, foi quando eu, meus dois irmãos, dois primos, e mais um monte de meninos, um total de onze ou doze, montamos em uma velha bicicleta, empilhados, e descemos um aclive forte lá em Uraí, na época uma cidadezinha minúscula do Paraná. Era tanto moleque reunido naquela pequena estrutura de metal, descendo a rua no maior pau, que a bicicleta deve ter ficado invisível. Justamente quando fazíamos uma curva, desembestados, meio sem rumo, meu pai e o pai de meus primos chegaram à varanda e viram nossa loucura sendo cometida. Não me lembro que castigo recebemos, mas deve ter sido no mínimo um mês sem sair de casa. Só escola, ida e volta. Se aquela bicicleta, na velocidade que desceu o aclive, tivesse batido em algum carro ou casa, uma meia dúzia teria sido hospitalizada. No mínimo. Principalmente os dois que iam sentados no guidom e o que ia em meus ombros. Eu era o “piloto” e estava mais protegido.

O dia que a catraca de uma bicicleta mastigou, sem arrancar, alguns dedos de um de meus pés eu prefiro nem contar. Até hoje encolho os dedos quando me lembro. Do mesmo jeito que faço com a mão direita quando me lembro de meu pai moendo cana e meus dedos indo junto. Felizmente só amassou as pontinhas de uns dois ou três. Coisa pouca...Ficaram só umas pequenas marcas com o passar do tempo.

Pão-de-batata e bicicleta são duas coisas que ficaram ligadas para sempre em minha mente: aos dezesseis, dezessete anos, eu era secretário da escola de meu pai e todas as noites saía do cursinho, ia até a padaria, comprava trinta pães-de-batata e os levava para casa, para a família toda. Uma noite cheguei em casa e não havia ninguém. Meu pai saíra do cursinho e fora direto para a festa onde estava o pessoal. Peguei um livro, um bule cheio de café e enquanto lia ia comendo os tais pães. Quando a família chegou eu havia comido os trinta pães-de-batata e consumido um bule enorme de café. Até hoje não entendo como couberam tantos pães em meu estômago. E eram de tamanho médio.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 17/05/2008
Código do texto: T993516
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