"Reminiscências Automobilísticas" =Cotidiano com humor irritante=

Hoje é o meu segundo dia como ciclista aqui em Santos. Mais de quarenta anos de intervalo entre uma bicicleta e outra não me tiraram a prática. Foi só comprar, montar, e sair pedalando por aí. Claro que o fôlego já não é o mesmo, mas andando na velocidade compatível com a idade, a gente pode ir bem longe. E eu fui. Passeei por um bom trecho de Santos, revi muitos trechos bonitos aos quais não havia voltado ainda, curti um pedação da ciclovia, e durante todo o percurso não acendi um único cigarro. Afinal de contas o motivo da compra do veículo foi esse: fumar menos e me exercitar mais.

Ao voltar do passeio peguei um trecho movimentado, vim pela esquerda, e de repente me vi impossibilitado de pedalar por estar muito próximo aos carros e ao meio-fio. Tirei o pé esquerdo do pedal e fui impulsionando a bicicleta com o pé esquerdo por um curto trecho. Nesse curto trecho dei uma ligeira encostada no espelho retrovisor de um carro de luxo. Fiz sinal à motorista pedindo desculpas e achei que ela não se importaria, visto que o espelho nem ao menos saiu do lugar. Ledo engano. A mulher baixou o vidro e berrou:

- Aprenda a dirigir essa merda, velho idiota.

Confesso que até levei susto com o vozeirão da madame. Pedalei a bicicleta até alcançá-la no próximo sinal, onde ela teve que parar, e encarei-a em silêncio, disposto a divertir-me com a grosseirona.

- Está olhando o que, velho?

Envolvi minha orelha com a mão, sinalizando que era surdo, e ela perguntou mais alto ainda:

- Está olhando o que, velho?

Respondi na mesma altura:

- Sua cara feia, gorda. Estou admirando seu bigode. Herdou da mamãe?

- Gorda é sua mãe, velho besta.

- A mamãe morreu na sexta? Coitada...Era obesa também?

- Vá pro inferno, velho cretino!!

- Tinha um corpinho mais fino? Bom, muito bom...Bigoduda ela era, não era?

- Você está abusando...

- Ah, ela está clareando? Faz bem...Velha feia e bigoduda é duro de agüentar...

- Vá à puta que o pariu, seu ordinário!

- Você tem razão, gorda, aqui no Brasil velhinha bigoduda é extraordinário.

O sinal abriu e algumas buzinas tocaram. Ela arrancou devagar e eu saí pedalando.

- Tchau, gooooorda. Até outro dia. Cuida bem do bigodão que ele é lindo.

- Velho desgraçado, filho da puta!!

- Bigodão batuta sim, obesa. Vá com Deus, gordinha.

A mulher arrancou com ódio, queimando pneus e eu saí pedalando tranqüilamente. Levei algumas décadas para aprender que irritar é muito melhor que xingar de volta. Pelo menos a gente se diverte mais.

Em São Paulo, há poucos anos atrás, eu ia pela bela avenida que liga São Paulo a Osasco, num domingo, e, achando que estava sozinho, movi o carro para a direita e dei um susto em um motorista. Voltei depressa para minha pista e fiz um sinal pedindo desculpas ao outro pela besteira que cometera. O cara não quis saber de desculpas. Ultrapassou meu carro, colocou o dele à frente do meu, desembarcou depressa, e veio pra cima de mim. A cara era a de quem estava planejando me matar devagar, devagarzinho, e o tamanho dele dava dois de mim, sem exagero algum. Alto pra cacete, mais pra gordo, e com cara de bandido bravo. Meu primeiro pensamento foi engatar uma ré e me mandar para salvar a pele, mas se fizesse isso não teria coragem de me encarar nem no retrovisor do meu carro. Também não era besta de descer e enfrentar a fera à mão livre. Resolvi sacanear o cara: à medida em que ele se aproximava, subindo a avenida a pé em minha direção, eu fazia o carro andar bem devagarzinho pra trás e sorria para ele. Meu sorriso alimentava-lhe o ódio e ele andava mais depressa. Mas meu carro também andava mais depressa e ele não me alcançava.

Eu subia de ré e sorria, ele subia a avenida e bufava. Eu dava uma paradinha e ele tinha esperança de me alcançar e talvez arrancar um de meus braços pela janela. Quando chegava perto eu movia de novo o carro e dava um simpático adeus a ele. Pensei até em parar e deixar que me batesse se ele chorasse de ódio. Lágrimas comovem-me.

De repente ele parou, pensou e voltou para o carro dele. Deve ter pensado em me alcançar, de frente ou de ré, ou em amassar meu carro com motorista e tudo. Enquanto ele entrava no carro eu arranquei depressa e entrei no Carrefour, lotado, e comecei a dar voltas em uma micro-praça redondinha que tem lá. Ele entrou no Carrefour e ficou dois carros atrás do meu. A cada vez que nos emparelhávamos, um de cada lado da pracinha, eu acenava simpaticamente um tchau e ele me respondia com gestos obscenos. Lá pela quarta volta, eu abri a porta de meu carro de repente, desci decidido e esperei que ele fizesse o mesmo. Ele fez e eu corri para o meu carro e disparei pela saída do supermercado. Buzinando e dando adeus pro grandão. A essa altura eu já tinha rido pela semana inteira. E a mulher ao lado do valentão também.

Saindo do Carrefour, acelerei o carro pra valer, dei a volta por baixo do viaduto e voltei pela pista contrária exatamente quando ele conseguia sair do supermercado. Buzinei até que me olhasse, dei um último sorriso, um tchauzinho, e arranquei a toda.

Gente! Levei um susto do cão! O maluco acelerou o dele também, subiu pela calçada com violência, passou para o lado da pista onde eu estava e veio direto pra cima do meu carro. Mais um segundo de expectativa e eu veria o famoso filminho que dizem que a gente vê momentos antes de morrer, desfiando toda nossa vida perante nossos olhos.

Sorte é coisa que costumo ter sempre que muito necessário. E desta vez também tive: exatamente quando o doidão fez o carro pular pela calçada vinha passando um carro do Detran e ele foi pego em flagrante cometendo a loucura. Fui salvo pelo gongo mais uma vez.

Buzinei pela última vez, dei tchau pra mulher dele, simpática e risonha, e voltei pra casa torcendo pra que ele não tivesse anotado a placa do carro. Seria fácil descobrir o endereço, ir lá, e descer o cacete no meu cunhado, o dono do carro.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 18/05/2008
Reeditado em 18/05/2008
Código do texto: T995042
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