Pesadelo juvenil

Quando acordei, estava com uma fome, sentia um frio interior e uma sede perturbadora. Meus lábios estavam secos. Minha visão estava embaçada e a minha pele estava incrivelmente suja. Já era tarde demais para ter qualquer atitude, aquele cheiro já estava dentro do pedaço mais meu que existe. Pois, eu sentia, só por isso.

Em toda parte havia resquícios daquele corpo que sucumbiu ao meu lado na cama. Por toda parte olhos, olhos de uma criança triste e quase cega.

Queria lhe pedir calma, mas seu permanente estado de pânico já atingia-me àquela altura da noite.

Era ridiculamente irônica a forma com que o sol, o novo dia e as promessas de renovações de esperança chegavam, pois nada nada nada de inovador havia ali. Ao contrário, a luz daquele dia que chegava parecia diminuí-lo ainda mais; ao invés de nascer novamente, ele morria um pouco mais a cada nascer do sol.

Não queria prosseguir com aquilo, sentia um estranho medo. Se um dia, ao acordar, ele não estiver mais ali? E se ele diminuísse ao ponto de sumir até de mesmo de dentro de mim?

De fato, não sabia como ajudá-lo, a situação já era uma batalha travada em meu íntimo. Mas como poderia fazê-lo parar de desejar desistir a todo instante? Como? Se meu dia amanhecia cético?

O rock in roll não salvaria nossas almas e o tal Deus, não posso afirmar que exista para todos. À minha frente, não havia chances naquela manhã.

Não sabia agir. Minha respiração ia vagarosamente. Estava ao lado de um semi-cadáver , em uma cama estranha, que não era a minha. E cada canto, cada ar que eu respirava e cada centímetro da coberta que cobria a parte inferior do meu corpo, cada minuciosidade era a presença dele, era sua lembrança.

Era como se ele tivesse ido embora, mesmo estando ali, mesmo antes de ter realmente chegado em minha vida.

Pois, os mortos não estão, necessariamente, mortos. Assim como nós podemos não estar, verdadeiramente, vivos.

Mais um longo suspiro. E outro. Outro. Outro...e... Enfim, meu pesadelo chegava ao término, estava na minha hora de sair. Já poderia arrancar de mim aquelas roupas, aquele corpo, aquele rosto fantasmagórico. Já poderia me colocar de molho, eliminando qualquer vestígio daquela sujeira toda.

Entre o vai-e-vem das pessoas no ônibus, entre uma parada e outra, entre uma rua e outra, entre um olhar e outro, entre tudo que minha semi-esquizofrenia matinal não possibilitou-me de enxergar naquela manhã, entre cada ação do viver compreendi que - realmente- havia ficado tarde demais para mim. Tinha entrado naquela vida e tão cedo não conseguiria sair. Era minha mais nova incumbência (não invenção).

Era a primeira página, de um novo livro. E temo o seu fim, antes mesmo do início.

É que tem esse gosto em minha boca, esse cheiro em meu corpo... e parecem ter chegado para ficar.

Constatação: À noite, indo para casa, com as pernas exaustas e a mente ainda mais, com os pés cheios de bolhas e com a boca muda, pude entender o que ele tentava gritar a todo instante: deveras, de nada adianta uma vida sem motivos.

Chana de Moura
Enviado por Chana de Moura em 21/05/2008
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