Discurso de Kennedy contra a Segregaçao Racial

Abaixo, discurso do Presidente J. F. Kennedy contra a segregaçao racial. Evidencio a sonoridade e o magnetismo retórico do entao presidente dos EUA.

Em seu famoso discurso de posse, proferido no terraço do Capitólio em 20 de janeiro de 1961, Kennedy "abusa" da retórica ao dizer: "Ask not what your country will do for you; ask what you can do for your country" (Nao pergunte o que seu país pode fazer por você mas o que você pode fazer por seu país). Ele substituiu o habitual "Don´t ask" pelo arcaico "ask not" reforçando o sentido imperativo da frase.

O discurso abaixo como que me queima as veias. Leiam e, se assim preferirem, substituam a palavra negro pelo que mais lhes afetam. Seja judeu na Alemanha nazista ou imigrante, na atualidade, aqui na Europa.

O fato é que para mim esse discurso continua sendo atualíssimo.

cacaubahia

====================================================

Boa noite, cidadaos:

Esta tarde, depois de uma série de ameaças e de declaraçoes desafiantes, se fez necessária a presença da Guarda Nacional do Estado de Alabama na Universidade de Alabama para aplicar a ordem judicial definitiva e inequívoca do Tribunal de Distrito dos Estados Unidos correspondente ao Distrito Norte de Alabama. Essa ordem ditava a matrícula de dois jovens residentes em Alabama claramente qualificados que haviam nascido negros.

Que tenham sido admitidos pacificamente no campus se deve em grande parte à conduta dos estudantes da Universidade de Alabama, que afrontaram suas responsabilidades de uma forma construtiva.

Tenho a esperança de que cada estadounidense, independente de onde viva, se detenha e examine sua consciência sobre este e outros incidentes relacionados. Esta naçao foi fundada por pessoas procedentes de muitas outras naçoes. Se formou sob o princípio de que todas as pessoas nascem iguais e que os direitos de cada indivíduo diminuem quando os direitos de um só se vê ameaçado.

Hoje, estamos comprometidos em uma luta mundial para promover e proteger os direitos de todos aqueles que almejam ser livres. Quando os estadounidenses foram enviados ao Vietna ou a Berlim Ocidental, nao pedimos só brancos. Portanto, deve ser possível que os estudantes de qualquer cor frequetem a qualquer instituiçao pública que escolham, sem necessidade de contar com o apoio de tropas.

Deve ser possível que os consumidores estadounidenses de qualquer cor recebam igual serviço em lugares de atençao ao público, como nos hotéis e restaurantes, nos teatros e lojas menores, sem que se vejam obrigados a recorrer a manifestaçoes de rua; e deve ser possível que os cidadaos estadounidenses de qualquer cor se inscrevam e votem em eleiçoes livres sem interferências ou com o temor de sofrer represálias.

Em resumo, deve ser possível que cada estadounidense desfrute dos privilégios de ser estadounidense sem que importe sua raça ou sua cor. Suscintamente, cada estadounidense deve ter direito a ser tratado como deseja ser tratado, como gostariam que tratassem seus filhos. Mas este nao é o caso.

A criança negra que nasce atualmente nos Estados Unidos, independente da regiao da naçao onde nasça, tem a metade das possibilidades de completar a educaçao secundária superior que uma criança branca nascida no mesmo lugar e no mesmo dia; uma terceira parte das possibilidades de terminar a universidade; uma terceira parte das possibilidades de ser profissional; o dobro das possibilidades de estar desempregado; aproximadamente uma sétima parte das possibilidades de ganhar dez mil dólares ao ano; uma esperança de vida sete anos mais curta; e a perspectiva de só ganhar a metade que os brancos.

Nao se trata de um assunto local. As dificuldades em torno da segregaçao e da discriminaçao raciais existem em cada cidade, em cada estado da uniao, e geram em muitas cidades uma crescente maré de descontentamento que ameaça a segurança do cidadao. Tampouco é uma questao partidária. Em uma época de crise nacional, as pessoas de boa vontade e generosas devem ser capazes de unir-se independentemente dos partidos ou da política. Nem sequer se trata só de uma questao jurídica ou legislativa. É melhor resolver essas questoes nos tribunais que nas ruas. Fazem falta leis novas em todos os níveis, ainda que as leis por si só nao possam fazer que as pessoas vejam o correto.

Estamos confrotando principalmente uma questao moral. É tao velha como as escrituras sagradas e tao clara como a Constituiçao dos Estados Unidos.

O miolo dessa questao é se todos os estadoudinenses hao de permitir-se ter igualdade de direitos e igualdade de oportunidades, se vamos tratar nossos compatriotas estadounidenses como queremos que nos tratem. Se um estadounidense, porque sua pele é escura, nao pode comer em um restaurante aberto ao público; se nao pode enviar seus filhos à melhor escola pública disponível; se nao pode votar pelos funcionários que o representa; se, em resumo, nao podem disfrutar a vida plena e livre que todos queremos viver; entao quem entre nós estaria satisfeito em mudar a cor de sua pele e ocupar seu lugar? Quem entre nós aceitaria conselhos de ter paciência com a dilaçao (demora)?

Cem anos de dilaçao há transcorrido desde que o presidente (Abraham) Lincoln emancipou os escravos; nao obstante, seus herdeiros, seus netos, nao sao plenamente livres. Nao foram ainda emancipados das ataduras da injustiça. Nao foram ainda emancipados da opressao social e econômica. E esta naçao, com todas suas esperanças e suas magnificências, nao será completamente livre até que todos os seus cidadaos sejam livres.

Predicamos a liberdade ao redor do mundo e o dizemos a sério. Apreciamos nossa liberdade aqui em casa mas, vamos dizer ao mundo - e o mais importante, vamos dizer a nós mesmos -, que esta é a terra da Liberdade exceto para os negros? Que nao temos cidadaos de segunda classe exceto os negros? Que nao temos um sistema de classes ou de casta, nem guetos, nem raça superior, exceto com relaçao aos negros?

Há chegado a hora para que essa naçao cumpra sua promessa. Os acontecimentos em Birmingham (Alabama) e em outros lugares hao incrementado tanto os gritos de igualdade que nenhuma cidade, estado ou órgao legislativo possa por prudência optar por ignorá-los.

As chamas da frustraçao e da discórdia ardem em cada cidade, ao norte e ao sul, onde os remédios jurídicos nao se encontram à mao. A reparaçao se busca nas ruas, nas manifestaçoes, nos desfiles e nos protestos que criam tensoes e ameaçam com a violência e ameaçam a vida.

Nos enfrentamos, portanto, a uma crise moral como país e como povo. Nao se pode afrontar com açoes policiais repressivas. Nao se deve deixar em maos das demonstraçoes crescentes nas ruas. Nao se pode calar com movimentos simbólicos ou discursos. É hora de atuar no Congresso, nos órgaos legislativos estatais e locais e, sobretudo, na vida diaria de todos.

Nao é suficiente culpar os demais, dizer que é um problema de um setor ou outro do país, ou lamentar os fatos que afrontamos. Se avizinha uma grande mudança e nossa tarefa, nossa obrigaçao, é levar a cabo essa revoluçao, essa mudança, pacífica e construtiva para todos.

Aqueles que nao fazem nada invitam a vergonha e a violência. Aqueles que atuam de forma audaz reconhecem tanto o direito quanto a realidade.

Na próxima semana solicitarei ao Congresso dos Estados Unidos que atue, que assuma um compromisso que nao foi assumido completamente nesse século com a proposta de que a raça nao tem lugar na vida das leis estadounidenses. O Poder Judiciário confirmou essa proposta em uma série de casos determinantes. O Poder Executivo adotou essa proposta na conduçao desses assuntos, incluindo o emprego de pessoal federal, o uso de instalaçoes federais e a venda de imóveis com financiamento federal.

Mas há outras medidas necessarias que só o Congresso pode adotar e que devem evidenciar nesse período de sessoes. O antigo código de igualdade ante a lei que rege nossas vidas ordena um remédio para cada mal, mas em muitas comunidades, em muitas regioes do país, se cometem danos contra os cidadaos negros e nao há remédios legais. A menos que o Congresso atue, seu único remédio está nas ruas.

Portanto, vou solicitar ao Congresso que aprove leis que outorguem a todos os cidadaos estadounidenses o direito a ser atendidos nas instalaçoes que estejam abertas ao público: hotéis, restaurantes, teatros e comércios menores e estabelecimentos similares.

Me parece que se trata de um direito elementar. Negar-lo é uma indgnidade arbitrária que nenhum estadounidense deve suportar em 1963; de fato, muitos a padecem.

Me reuni recentemente com algumas dezenas de líderes empresariais para incitar-lhes a que empreendam açoes voluntárias para por fim a esta discriminaçao e me senti estimulado por sua resposta. Nas últimas semanas, mais de 75 cidades foram testemunhas dos progressos feitos para suspender a segregaçao racial neste tipo de instalaçoes. Mas muitos nao estao dispostos a atuar sozinhos. Por essa razao, faz falta uma lei nacional, se é que vamos transladar esse problema das ruas aos tribunais.

Também estou solicitando ao Congresso que autorize ao governo federal a participar mais plenamente dos pleitos judiciais para por fim à segregaçao racial na educaçao pública. Tivemos êxito ao persuadir muitos municípios para que eliminem voluntariamente a segregaçao. Dezenas deles hao admitido negros sem violência. Hoje há negros que frequentam escolas públicas em cada um de nossos 50 estados, mas o ritmo é muito lento.

Muitas crianças negras que se matricularam em escolas primárias segregadas no momento da decisao do Tribunal Supremo há 9 anos, se matricularam este outono em escolas secundárias segregadas, depois de sofrer um dano irreparável. A falta de uma educaçao adequada nega aos negros a oportunidade de conseguir um emprego decente.

A implementaçao ordenada da decisao do Supremo portanto, nao se pode deixar somente em maos de quem carece dos recursos econômicos para empreender açoes legais ou que podem ver-se submetidos a acosso.

Se solicitarao outras figuras jurídicas, incluindo uma proteçao maior ao direito de voto. Mas as leis, insisto, nao podem solucionar sozinhas esse problema. Se deve solucionar no lar de cada estadounidense, em cada comunidade e em todo o território do nosso país.

Acerca dessa questao, quero render tributo a esses cidadaos do norte e do sul que têm estado trabalhando em suas comunidades para melhorar a vida de todos. Nao estao atuando a partir de um sentido do dever jurídico, senao, a partir de um sentido de decência humana.

Do mesmo modo que nossos soldados e marinheiros em todas as partes do mundo estao afrontando os desafios da liberdade na primeira linha de fogo, e eu os saúdo por seu honra e coragem.

Compatriotas, este é um problema que afeta a todos, em cada cidade do norte como do sul. Hoje, há duas ou três vezes mais negros desempregados que brancos, com uma educaçao inadequada, que se mudam às grandes cidades, incapazes de encontrar trabalho; jovens em particular sem trabalho e sem esperanças, a quem se nega a igualdade de direitos, a quem se nega a oportunidade de comer em um restaurante ou cafeteria, a entrar num cinema, a quem se negam o direito a uma educaçao decente e a quem se lhes nega até hoje o direito a matricular-se numa Universidade Estatal mesmo que estejam qualificados. Me parece que estas sao questoes que nos afetam a todos, nao só aos presidentes, aos representantes no Congresso ou aos governadores dos Estados, senao a cada cidadao dos Estados Unidos.

Este é um só país. E se há convertido em um só país porque todos nós, e toda a gente que há vindo para viver aqui, temos tido as mesmas oportunidades para desenvolver seus talentos.

Nao podemos dizer aos 10% da populaçao que nao podem ter esse direito; que seus filhos nao podem ter a oportunidade para desenvolver quaisquer que sejam seus talentos; que a única forma de conseguir seus direitos é saindo às ruas e se manifestar. Creio que devemos a eles e a nós mesmos um país melhor que isso.

Portanto, peço vossa ajuda para que possamos avançar para frente e proporcionar o tipo de trato equitativo que quiseramos para nós mesmos; para dar a cada criança a oportunidade de educar-se até o limite de seu talento.

Como falei antes, nem todas as crianças têm talento igual ou capacidade igual, ou motivaçoes iguais, mas devem ter os mesmos direitos a desenvolver seus talentos, suas capacidades e suas motivaçoes para fazer algo de si mesmos.

Temos o direito de esperar que a comunidade negra será responsável e cumprirá com a lei mas, esta comunidade tem o direito a esperar que a lei seja justa, que a Constituiçao nao distinga cores, como o juiz do Tribunal Supremo (John Marshall) Harlan disse a princípio deste século.

Isto é do que se trata, e se trata de uma questao que concerne a este país e ao que ele representa, e ao afrontá-la peço o apoio de todos nossos cidadaos.

Muito Obrigado

John Fitzgerald Kennedy, 1963.