Fragmentos de "Os Demônios", de Dostoiévski

Fragmentos do romance sensacional “Os Demônios”, que na época de seu lançamento fora traduzido com o título de “Os Possuídos”, ou “Os Possessos”. O Tradutor Paulo Bezerra, que foi fiel ao original russo, ao traduzir o livro para o português, traduziu a expressão russa “Biêsi” que significa literalmente “Demônio”. O título deste livro é uma referência a uma passagem do evangelho de Lucas. Bakúnin certa vez disse que “ que os revolucionários do passado, do presente e do futuro foram e serão sempre demônios”. Nesta obra excepcional, Fiódor Dostoiévsvi chega a ser profético. Nele o leitor poderá vislumbrar, no drama intelectual de Kirílov, a antecipação do Zaratustra de Nietzsche escrito dez anos antes do filósofo Nietzsche publicar sua obra mais célebre, e nas idéias do personagem Chigalióv e Piotr Stiepánovitch, os cruéis fanatismos de Hitler e Stálin. Numa época em que a violência, a ignorância, o terrorismo e a impostura ideológica (verdadeiros demônios que assolaram o século XX e nossa época atual) continuam vivos sob novos disfarces.

_” Kirílov estuda e está escrevendo um curiosíssimo artigo sobre as causas dos casos de suicídio que se tornaram freqüentes na Rússia e em geral sobre as causas que aceleram ou inibem a difusão do suicídio na sociedade. Chegou a resultados surpreendentes.

_ A seu ver, o que impede as pessoas de cometerem suicídio?

_ A dor.

_ A dor? Será que isso é tão importante....Neste caso?

_ De primeiríssima importância. Há duas espécies de suicida: aqueles que se matam ou por uma grande tristeza ou de raiva, ou por loucura, ou seja lá por que for...Esses se matam de repente. Esses pensam pouco na dor, se matam de repente. E aqueles movidos pela razão_ estes pensam muito.

_ E porventura não há meios de morrer sem dor?

_ Imagine, parou diante de mim, imagine uma pedra do tamanho de uma casa grande; ela está suspensa e você debaixo dela; se lhe cair em cima, na cabeça, sentirá dor?

_ Uma pedra do tamanho de uma casa? É claro que dá medo.

_ Não estou falando de medo; sentirá dor?

_ É claro que não haverá dor.

_ Mas se você realmente ficar debaixo, e enquanto ela estiver suspensa, vai ter muito medo de sentir dor. Cada um não sentirá dor e cada um sentirá muito medo de sentir dor.

_ Bem, e a segunda causa, a grande?

_ É o outro mundo.

_ Ou seja, o castigo?

_ Isso é diferente. O outro mundo, só o outro mundo.

_ O homem teme a morte porque ama a vida, eis o meu entendimento __observei_, e assim a natureza ordenou.

_ Isso é vil e aí está todo o engano!_respondeu Kirílov. A vida é dor, a vida é medo, e o homem é um infeliz. Hoje tudo é dor e medo. Hoje o homem ama a vida porque ama a dor e o medo. Haverá um novo homem, feliz e altivo, aquele para quem for indiferente viver ou não viver será o novo homem. Quem vencer a dor e o medo, esse mesmo será Deus. E o outro Deus não existirá.

_ Então a seu ver o outro Deus existe mesmo?

_ Não existe, mas ele existe. Está compreendendo o que estou querendo dizer? Na pedra não existe dor, mas no medo da pedra existe dor. Deus é a dor do medo da morte. Quem vencer a dor e o medo se tornará Deus. Então haverá uma nova vida, então haverá um novo homem, tudo novo... Então a história será dividida em duas partes:do gorila à destruição de Deus e da destruição de Deus à mudança física da terra e do homem. O mundo mudará, e as coisas mudarão, e mudarão os pensamentos e todos os sentimentos.

_ “O tempo não é um objeto, mas uma idéia”. Vai se extinguir na mente.

_ O homem é infeliz porque não sabe que é feliz; só por isso. Quem o souber no mesmo instante se tornará feliz. Aquela nora vai morrer, mas a menininha vai ficar. Tudo é bom.

_ E se alguém morre de fome, se alguém ofende e desonra uma menina, isso é bom?

_ Bom. Se alguém estoura os miolos por causa de uma criança isso é bom. E se alguém não estoura, também é bom. Se todos soubessem que estão bem, então estariam bem, mas enquanto não sabem que estão bem não estão bem. Eis toda idéia, toda, e não há mais outra.

_ Imbecil, eu também sou um patife como tu, como todos, e não há um homem decente neste mundo. Não existe pessoa decente em lugar nenhum.

_ Finalmente você adivinhou. Será que até hoje o senhor não compreendeu Kirílov, com a sua inteligência, que todos são iguais, que não existem nem melhores e nem piores, apenas mais inteligentes e mais tolos, e que todos são patifes? Kirílov, nunca pude compreender por que o senhor quer se matar. Sei que é por convicção...por firmeza. Ou estarei errado?

_ Não, tu disseste bem; que seja por conforto. Deus é necessário , pó isso deve existir.

_ Mas eu sei que ele não existe nem pode existir. Se não existe Deus, então eu sou Deus, porque eu existo. Compreendeu? Se Deus existe, então toda vontade é Dele, e fora da vontade Dele nada posso. Se Ele não existe, então toda vontade é minha e sou obrigado a proclamar o meu arbítrio.

....

_ Sou obrigado a me matar, porque o ponto mais importante do meu arbítrio é: eu mesmo me matar.

_ Sabe de uma coisa senhor Kirílov, no seu lugar, para mostrar o meu arbítrio eu mataria qualquer um e não a mim mesmo. Poderia vir a ser útil.

_ Tolo. Matar outra pessoa seria a parte mais vil do meu arbítrio; isso é para ti. Eu quero a parte suprema. Para mim não existe idéia superior à de que Deus não existe. Tenho atrás de mim a história da humanidade. O homem não tem feito outra coisa senão inventar um deus para viver, sem se matar; nisso consiste toda a história do mundo. Sou o único na história do mundo que pela primeira vez não quis inventar nenhuma espécie de divindade.

_ Escuta Kirílov o que vou te falar: um dia, no centro da terra houve três cruzes. Um dos crucificados cria tanto que disse ao outro: ”Hoje estarás comigo no paraíso”. Terminou o dia, ambos morreram, foram-se e não encontraram nem paraíso nem ressurreição. A sentença não se justificou. Se as leis da natureza não pouparam nem aquele homem magnífico, mas obrigaram até Ele a viver no meio da mentira e a morrer pela mentira, então quer dizer que todo planeta é uma mentira e se sustenta na mentira e em um escárnio tolo.

_ Esse é seu ponto de vista. Não compreendo como até hoje um ateu pôde saber que Deus não existe e não se matou no mesmo ato! Sou infeliz por ser obrigado a proclamar o meu arbítrio. Todos são infelizes porque todos temem proclamar seu arbítrio. O medo é a maldição do Homem. Durante três anos procurei o atributo de minha divindade e o encontrei: o atributo de minha divindade é meu arbítrio. Mato-me para dar provas de minha insubordinação e de minha liberdade terrível e nova. ”

Sugiro que vocês leiam o livro "O mito de Sísifo" do escritor Albert Camus, o qual diz nesta obra que o único e maior problema de toda a filosofia é o tema do suicídio, e o livro todo é uma análise interessantíssima sobre este assunto. incluse ele comenta o personagem Kirílov nesta obra. AH, Albert Camus já foi o ganhador do Nobel de Literatura.

Na obra “Crepúsculo dos ídolos”, Nietzsche afirma que um dos poucos homens de sua época que ele mais admirava e aprendeu coisas novas foi Dostoievski. Certamente esta obra, Os Demônios, teve uma forte influência na sua obra “Assim falou Zaratustra”, onde Nietzsche proclama a morte de Deus, e profetiza o surgimento do “super-homem” ou do “além-do-homem” como alguns autores traduzem. O próprio Hitler se considerava esse “super-homem” que renovaria a Humanidade, pois Hitler era um leitor fanático de Nietzsche. Contudo, ele compreendeu errado o pensamento do filósofo. Nietzsche era totalmente contra o anti-semitismo, ele brigava e odiava sua irmã e seu antigo amigo Richard Wagner porque ambos eram anti-semitas. Após a morte de Nietzsche, sua irmã passou a tomar conta de toda obra filosófica de seu irmão, e até adulterou vários textos de Nietzsche para que todos cressem que ele também odiava os judeus.