DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA BRASILEIRA DE MÉDICOS ESCRITORES


“Todos os dias, a criatura humana, mesmo que nem o perceba, está a escrever um fragmento de sua própria história e das razões do seu viver”.
L.A.F. Soares – Médico e Escritor - Ex-Presidente da SOBRAMES NACIONAL

A sessão solene desta noite, para nós memorável sob todos os aspectos, destina-se, precipuamente, e seguindo dispositivos regimentais, a dar posse a três novos integrantes da Academia Brasileira de Médicos Escritores. Para este agraciado, mormente, a emoção é ainda maior e mais significativa pelo fato de irmos ocupar a cadeira de número 1, patronímica de Mateus Vasconcelos, o visionário idealizador deste colendo silogeu já bidecenário. Tanto sentimento envolvido faz pressupor discurso longo. Não temam, manter-nos-emos fiel à sabedoria romana: “Esto brevis et placebis”. Ou, à nossa maneira: é apanágio dos chatos o querer tudo dizer.
Ancestrais, as Academias são agremiações de caráter científico, artístico ou literário, podendo ter origem e manutenção institucional ou particular. A associação de iguais, ou que partilham mútuos interesses em qualquer das vertentes do humano engenho é uma necessidade e tem sido uma realidade ao longo de toda a existência de nossa espécie, por óbvias e múltiplas razões, cabendo ressaltar a facilitação do estreitamento de laços de amizade e o usufruto de parcerias e/ou assistências laborais, bem como da interpenetração de conhecimento e de trabalho. Diferentemente das leis da Física, aqui os iguais se atraem.
É da praxe cerimonialística das Academias que o novel recipiendário de titularidade em seus quadros faça um breve traçado biográfico do patrono da Cadeira, a que prazerosamente damos cumprimento.
Era paulista de São Sebastião da Grama o entusiasta idealizador da Abrames, que, fato curioso, porque houvera nascido em águas territoriais portuguesas fora registrado na Embaixada brasileira, em Lisboa, tendo seu assento de nascimento sido efetuado naquela interioridade do chão bandeirante.
Foram seus pais Agenor Amador Vasconcelos e Aurora Pinto de Vasconcelos. De sua união com Noêmia de Lima Vasconcelos nasceu Roberto de Lima Vasconcelos.
Cursou o primário e o secundário na Escola Acadêmica de Lisboa. Vindo para o Brasil fez o curso médico na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, graduando-se em 1936. Desde cedo demonstrou grande avidez pela arte hipocrática, assim que foi assistente voluntário da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1941); endocrinologista do Sanatório São Lucas, São Paulo (1943); assistente da 2ª Enfermaria de Clínica Médica de Mulheres da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1945). No ano anterior, 1944, conquistara o título de Livre-Docente pela Faculdade de Medicina de Porto Alegre, defendendo tese sobre Andropausa.
Empreendedor, polifacético e dotado de espírito associativo ímpar foi membro da Associação Brasileira de Propaganda; da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia; da Associação Brasileira de Imprensa e correspondente das associações médicas do Paraná, da Bahia e do Rio Grande do Sul, bem como do Instituto de História da Medicina e da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia. Integrou o conselho científico da revista Folha Médica, de grande prestígio e evidência à época.
Foi Membro Fundador da Academia Brasileira de Administração Hospitalar; da Associação Médica de Língua Portuguesa; da Sociedade Franco-Brasileira de Medicina (vice-presidente de 1976 a 1979); da Associação Brasileira de Médicos Assessores da Indústria Farmacêutica. Foi, igualmente, Membro Honorário da Academia Brasileira de Medicina Militar.
Na Academia Nacional de Farmácia exerceu a vice-presidência por seis mandatos, entre 1965 e 1981, tendo atuado como coordenador do Prêmio “Jean Claude Roussel”, temática “Arteriosclerose”, em 1979. Organizou e fundou o Clube dos Girafas, que reúne diretores de propaganda, de vendas, de departamentos científicos e relações públicas da Indústria Farmacêutica, sendo, por três vezes, presidente.
Exerceu diversas funções nos laboratórios Silva Araújo Roussel, tais quais: médico de propaganda; responsável por relações sociais e experimentação clínica; chefe do departamento de propaganda; chefe do departamento científico e, ao final, diretor da instituição. No desencargo de tais funções fez estágio de aperfeiçoamento em Paris e Londres, nos Laboratórios Roussel/Uclaf (1966) e estágio no notório Instituto Pasteur (1967).
Por inegáveis méritos recebeu distintas condecorações, a ver: Ordem Soberana e Militar de Malta; medalha “Mérito Militar” da Academia Brasileira de Medicina Militar; medalha “Clementino Fraga” do Governo do Estado da Guanabara; medalha “Estado da Guanabara”; “Medaille d’Honneur Du Travail” conferida pela República Francesa; “Cidadão do Estado do Rio de Janeiro” deferida pela Assembléia Legislativa; “Ordem do Mérito São Lucas”; medalha da SBEM; “Comendador” da Academia Gentium Pro-Pace e medalha Cívico-Cultural “Regente Feijó” do Instituto Internacional da Heráldica e Genealogia.
Nosso patrono foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES, regional da Guanabara, tendo ocupado por duas vezes a presidência. Na Sobrames Nacional foi vogal na gestão Carlos da Silva Lacaz; vice-presidente; presidente e organizador do VI Congresso Brasileiro de Médicos Escritores, no Rio de Janeiro, 1976 e, alfim, presidente da Nacional (1980-82). Pugnou tenazmente pela mudança do nome da entidade de Sociedade Brasileira de Escritores Médicos - SBEM para Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – SBME e depois SOBRAMES, consumada em 1979 na gestão Olivar Dias da Silva que, como nós, era paraense. Em sua gestão, e sob sua presidência, realizou-se, de 28 a 30 de novembro de 1980, o VIII Congresso Nacional da sociedade, sob o tema “Vida Literária de João Guimarães Rosa”
Mateus Vasconcelos, já o dissemos, foi o grande idealizador da Abrames, para cuja consecução trabalhou com dedicação e afinco, juntamente com Miguel Calile Jr. e Marco Aurélio Caldas Barbosa. A fundação oficial em 17 de novembro de 1987 e instalação solene no Rio de Janeiro, em 26 de maio de 1989, tanto ele, quanto Calile Jr., falecidos anteriormente, não tiveram a glória e a ventura de presenciar. Entretanto, por reconhecimento e justiça, seus nomes foram consagrados ao patronato das cadeiras de nos. 1 e 4, para as quais foram eleitos titulares-fundadores, respectivamente, o brilhante, multilaureado e multipremiado Luiz Gondim de Araújo Lins, mestre consagrado do verbo e do verso que vem de ser guindado, com mérito, à dignidade de Membro Emérito, abrindo a vaga que ora desvanecidamente passamos a ocupar, e André Petrarca de Mesquita.
Eis aí, senhores acadêmicos e digníssimos convidados, a imensa responsabilidade de que nos sentimos imbuído ao assumir a cadeira que passaremos a ocupar neste sodalício literário nacional.
Entrar para uma academia de letras, assim no nível estaduano como no âmbito nacional, é a ambição maior de quantos se dedicam, afincadamente e com paixão, a esta nunca fácil arte de escrever, tão afanosa, às vezes, que exigiu de Ernest Hemingway, Prêmio Nobel de Literatura de 1954, confessar; “Reescrevi 80 vezes o último parágrafo de ‘Adeus às Armas’ até me sentir satisfeito” e que o imortal poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade, em seu antológico poema “O Lutador”, sentencia que: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos /mal rompe a manhã” e remata, em outro verseto: “Lutar com palavras/ parece sem fruto./ Não têm carne e sangue/ entretanto luto”.
Lutar com as palavras, a replicar o menestrel de Itabira, é tarefa quotidiana, quase permanente do escritor, seja qual for sua área de atuação: a crônica, o conto, a poesia, o ensaio, o romance, o teatro, o jornalismo, a memorialística, o texto técnico-científico e outros, tendo cada um, por via de regra, um modo peculiar de fazê-lo, a que se chama estilo. Machado de Assis, o “pai da literatura brasileira”, cujo centenário de “encantamento” estamos a comemorar, arguto e frasista como nenhum outro reconheceu o fato e cunhou a imagem: “As palavras têm sexo. E casam-se. O casamento delas é que se chama estilo”. Assemelhadamente nos diz Max Martins, um dos maiores poetas parauaras de todos os tempos: “Para mim as palavras se amam. As palavras fazem amor também e dão a poesia”. Ao escritor cabe, destarte, a árdua tarefa de propiciar o perfeito conúbio verbal. Julgamos que – e já o dissemos em outro momento – “O estilo é inerência do Autor”.
O ato solitário de escrever exige trabalho, persistência, dedicação. A inspiração representa tão-somente 10%. Os restantes 90% são mesmo de transpiração. Até os textos mais singelos e que à primeira vista parecem ter sido feitos “ao correr da pena” – currente calamo, como já diziam os romanos, quantas vezes demandaram horas inteiras na faina de consertar, retocar, refazer, achar a palavra certa para concluir uma idéia ou, mais estafante ainda, proceder às correções necessárias, adequar uma seqüência de palavras que fluíram, às vezes em catadupa, às regras da gramática, “pra não maltratar o verso”, como nos alerta o saudoso sambista João Nogueira. E haja experimentos, sinonímia, elipse, hipérbatos, contrações, apóstrofes, neologismos e outros que tais para conseguir a beleza final que comove, emociona ou enleva.
Aquele escritor que assim não age, no afã de aprimorar seus textos, ou é um medíocre literário ou um desleixado cultural; como um mau pai que não zela por seus filhos – os seus escritos! “Sendo ao mesmo tempo forma e conteúdo, tanto a palavra como a frase exigem a correção que dedicamos aos elementos fundamentais de nosso equipamento existencial”, sentencia o consagrado escritor, jornalista e acadêmico da ABL, Carlos Heitor Cony. Em síntese, as letras e as palavras são como gemas brutas, as quais, em mãos habilidosas dos artesãos joalheiros terminam por compor jóias de rara beleza e valor inestimável. Por isso que julgamos ser a literatura a sublimação da palavra – e só assim entendemos Literatura.
O médico, no exercício de suas tarefas laborais, diuturnas, no mais das vezes, encontra campo fertilíssimo para a descrição de suas experiências, de suas observações, inovações terapêuticas clínicas, subsídios legados às técnicas cirúrgicas, sobre doenças, sobre doentes, etc. Eis aí a Literatura Técnica (Médica), adstrita, à puridade, à sua atuação profissional. “A Medicina e a Literatura se completam. Elas compreendem a pessoa humana”, diz-nos o prolífico escritor Moacyr Scliar, médico atuante e membro de Academia Brasileira de Letras.
Outras vezes, o executor da Medicina, extrapolando a confinação do campo científico e espraiando-se pela universalidade cultural, reserva parte de seu tempo de lazer, de seus momentos de ócio e devaneio para discretear sobre a vida humana, fatos do dia-a-dia, podendo fazê-lo em forma de poesias, contos, ensaios, crônicas – coisas do espírito! -, deixando, muitas vezes, que o estro poético indormido ou o humor e a ficção aflorem à pena e sejam passados para a letra, pondo a descalvado “a beleza inexplicável da pérola, na tosca rudeza da ostra”, a redizer os belos versos de Beatriz Dutra. Temos, aqui, a Literatura Artística em prosa e verso. “Não fazem mal as musas aos doutores”, já afirmava o notável poeta português da Renascença quinhentista Antonio Ferreira (1528 -1569), coevo e amigo de Camões.
A caneta e o bloco de receituário utilizados na nobre missão de salvar vidas ou mitigar a dor dos enfermiços podem – e devem, sim – ser também aproveitados para o indeclinável mister de legar aos porvindouros os conhecimentos hauridos, a cultura apurada, a sensibilidade exalçada. A arte de curar, aliada ao dom de escrever, propiciam e viabilizam o dever de transmitir. Nada mais patético, na Medicina, que o tecnicismo extremado, limitante, que apequena e soterra a quem é dele vezeiro.
Todos os que hoje aqui tomam posse, preenchendo vagas na Academia Brasileira de Médicos Escritores, têm trabalhos e vivência literária de molde a justificar suas admissões, até porque submetidos aos critérios seletivos estipulados estatutariamente por esse silogeu. Todos, em seus respectivos campos de atuação, produziram obras literárias de maior ou menor densidade, que os fizeram conhecidos e reconhecidos nos círculos das letras, o que restará evidente com a simples leitura de seus currículos literários.
De nossa parte vimos trilhando as sendas dessa árdua seara já vai para além de sete lustros, primando sempre pela correção e aprimoramento dos escritos que produzimos e o cuidadoso amanho das letras. Nossa ascensão a Membro Titular desta conspícua congregação literária não será, por suposto, prêmio de chegada, mas estímulo vigorizante da continuidade que pretendemos imprimir à caminhada já empreendida, até quando o Senhor dos Destinos assim o determinar, pois, a evocar Camões, “Quem valorosas obras exercita,/ louvor alheio muito o esperta e incita” (v. Fotos no Site do Escritor - abaixo).
Por fim, desejamos agradecer, sinceramente, a todos quantos nos honraram com suas presenças hoje, neste precioso Salão Nobre do CREMERJ, estimulando-nos e prestigiando a sessão solene deste celebrado ateneu literário
Muito obrigado.
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Pronunciado na Sessão Solene de posse em 27/11/2008, Auditório "Júlio Sanderson"do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro
serpan@amazon.com.br - www.sergiopandolfo.com
Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 24/02/2009
Reeditado em 07/01/2012
Código do texto: T1455183
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