Popularização dos mp3s.

De que estamos em um mundo abstrato isso não há dúvidas. Passamos da época em que as músicas eram veiculadas em fitas e vinis. A interação com os aparelhos era maior, para se tocar uma fita tínhamos que apertar um botão meio duro, o pause era tão duro quanto, voltar ou ir pra frente demorava. Tínhamos que interagir com a fita. Já com o vinil a coisa era um tanto diferente. Pegávamos a agulha, posicionávamos onde quer que fosse começar a tocar, seja no início, sejam nas faixas posteriores. Ajustávamos a velocidade, limpávamos o vinil, a agulha, trocávamos ela.

Depois veio algo parecido com uma pizza metálica, eram ums Super Vídeos, uns cds bem maiores. Poucas pessoas o tinham, e mandaram mal, pois logo sumiu. E entramos na era dos cds. Logo vieram os dvds também. Passamos mais a não vê-los praticamente. De dentro da caixa passa para uma gavetinha que some dentro do aparelho e nós mostra apenas números, letras e símbolos. Apertamos um singelo botão e o som vem até nós. No caso do dvd o vídeo também. Perdemos o contato com o material. Antes pegar sua fita ou girar seu vinil era de praxe, um contato bem direto. Hoje mal se pega nos cds/dvds podem arranhar, estragar.

Passamos de um modo bastante visível de reprodução musical, fita e vinil nós víamos como a coisa era feita, o modo como funcionavam. Por mais que não compreendêssemos como o som saía da agulha pro auto falante ou como da fita magnética ela inundava o ambiente com sonoros acordes, nós os víamos, era dali que saía. Já com cds e dvds não temos mais alguma noção do que seja feito. Eles entram lá na gavetinha e nos retornam o som. Um tanto melhor, lógico, mas isso não entra em questão aqui. Perdemos naquele momento uma integração grande com nosso objeto. Assim como perdemos também o contato com a comida ao substituir o fogão pelo microondas. Assim como substituímos o uso da faca pelo multiprocessador. Assim como substituímos o cavalo pela charrete, pelo automóvel, do qual nada entendemos de fato, só fazemos é apertar um pedal, assim como o botão do microondas e o push do multiprocessador.

Estamos nos distanciando das coisas de fato. Nossa realidade fica mais abstrata cada dia. E para coroar essa abstração total vêm-nos os mp3s. Que não se resumem só nessa extensão. Devido aos vários tipos de arquivos o mp3 vem hoje muito mais como uma Gillete e um Bombril da vida, substituir um tipo pelo nome popularizado. Wma, mp3, e demais extensões viram tudo mp3. Que é a coroação de mais um passo rumo a abstração. As músicas agora não passam mais do que um indicativo no monitor do pc e no visor de cristal liquido do mp3 player, seja do carro, seja do 3 em 1 seja do iPod. Elas são os bits que vão de um visor a outro. Não mais tocamos os mp3s, podemos colocar as mãos no nosso HD, nele estão contidas milhares de músicas. Podemos colocar a mão em nosso iPod (ou versão genérica dele) e nele estão as mesmas milhares de músicas, todas passadas de um a outro por um simples cabo.

Por duas pilhas AA podemos ouvir 20 horas de músicas sem nem mesmo saber o que são aquelas músicas. São arquivos, sim, mas o que são arquivos? Ninguém sabe. Antes não sabíamos o que era uma compressão em fita magnética, em vinil, em cd. Mas os víamos, os tocávamos, cada vez menos, sim de fato. Perdemos, como o estamos perdendo em todos os cantos de nossas vidas, o contato com as coisas. Olhar para seu acervo de vinis, de cds, de livros e saber que provavelmente as próximas gerações vão os conhecer como nós conhecemos o gramofone é assustador. Não pelo fato deles não conhecerem tais coisas, mas sim pela perda do contato com a realidade palpável.

A realidade está se tornando irreal, abstrata. A tecnologia é uma aliada do ser humano. Sem dúvidas. Mas até que ponto estamos retroagindo em prol desta? Todo o corpo humano tem necessidades. Muitas físicas de contato, interação. Quando vemos em projeções do futuro em filmes, livros e demais meios podemos constatar o passo a frente dessa perda do contato, portas que se abrem sem o toque, comandos de voz para aparelhos eletrônicos, visores digitais substituindo papéis, e a idealização maior, teletransportes substituindo o movimento humano básico de locomoção.

Até que ponto esse distanciamento da realidade palpável é bom? Até o ponto em que nós tentamos compensar a falta do toque com outras coisas. O consumo está aí para isso. Substituímos a nossa necessidade básica de tocar, interagir pela imagem disso. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Estamos assistindo o espetáculo de nossas próprias vidas, mas não o estamos protagonizando, estamos fingindo sermos nós os seus atores principais. Essa substituição do real pela imagem do real é que é perigosa para nós.

Ainda temos nossas relações afetivas, com parentes, amantes, amigos, inimigos, mas são elas o estopim de tudo que não vivemos hoje. Tudo que não queremos hoje é que esse detalhe venha para atrapalhar nossa perfeição abstrata. O mp3 não vem para desvendar isso, vem como epifania de mais um passo na direção em que tudo caminha. Concentramos nossas atenções nas nossas relações, pois tudo o que nos remete a elas é a nossa indizível vontade de que elas não existam mais do que existe o cabo que transporta os bits do pc para nosso iPod. Imaginamos como devemos agir com nossos amigos, parentes, amigos e inimigos e agimos de acordo com o que pensamos ser o que devemos fazer. Não é mais uma relação direta, mas uma relação mediada pela imagem que temos delas.

Infelizmente nossa tecnologia nos leva contra o rumo natural de nossos seres. Nossa própria natureza está sendo negada a cada vez que tiramos de nossas vidas objetos porque a nossa sociedade entra no acordo tácito de que uma tecnologia é melhor que a outra, não porque de fato é, mas porque tudo que é novo é vendido como melhor, sem o devido cuidado, sem a devida atenção para os malefícios psicológicos e práticos de sua aplicação. E como o que é vendido como melhor é vorazmente consumido como melhor. Nessa imagem do melhor derrete a camada de realidade existente deixando apenas a abstração dela. Em uma sociedade que o contato cada vez menos é necessário, a interação cada vez mais rara, vemos que é uma sociedade cada vez mais longe do ser humano como ele é, de carne e osso, sensível, afetivo. Creio não haver substituto abstrato para suprimos essas necessidades. E se os compensamos com o consumo ou outros modos imagéticos da compensação esses só nos fazem entrarmos mais ainda no mundo onde a realidade é abstrata, levando em conta o processo a que isso leva. Pegar um cd de mp3 e ouvir 10 horas de música initerruptas? Primeiro, quem agüenta ouvir 10 horas de música initerruptas? Cadê o bom senso de saber que levar dois cds normais de áudio para ir e voltar do trabalho não são suficientes? Precisamos tanto da imagem de que controlamos 10 horas de música só pelo fato de controlarmos? Nunca vamos precisar de fato delas, elas não são necessárias. Elas nos dão acesso a músicas demais, que nunca ouviríamos, mas também não as queremos ouvir, só temos a sensação de que as controlamos. Mais uma vez a imagem da realidade. Não a vivemos a imaginamos.

leandroDiniz
Enviado por leandroDiniz em 03/05/2006
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