Discurso à moda de inventário

DISCURSO À MODA DE INVENTÁRIO

A Francisco José Pereira - Discurso lido em nome da Academia Catarinense de Letras na Sessão Saudade realizada em 09.05.2013

Senhoras e Senhores,

"A família queria porque queria. Mas a moça se recusava.

"- Por que não, meu Deus? - insistia a família, unânime. - Um partido tão bom assim.

"Ele era Tenente da Marinha. Filho de Almirante.

"A pressão da família crescia, desagradável e já insuportável. A moça cedeu, afinal.

"E só não foi mais infeliz, porque teve 18 amantes."

Senhoras e Senhores,

Este é o texto completo do conto "Um bom partido", um dos 35 contos conhecidos que o nosso Francisco José Pereira escreveu em sua carreira de ficcionista. Os poetas sempre desfrutaram de uma enorme vantagem, em relação aos prosadores, quando se trata de homenageá-los com a leitura de uma obra de sua autoria, pois sempre haverá um poema curto para ser declamado. Já a declamação de novelas é impraticável, enquanto a leitura de contos exige, naturalmente, uma pequena obra que consiga realizar-se em sua plenitude com poucas palavras. Nem todo conto curto é literatura. Mas "Um bom partido" é uma pequena obra-prima porque evoca um tempo e um universo social abrangente.

Há uma pergunta, no entanto, que se impõe desde logo: afinal, é o homem ou a obra que deve prevalecer?

Para os familiares e os amigos, o homem se sobrepõe, e deste homem que se foi restam as lembranças que cada qual carrega consigo, uma forma sutil que encontramos nós, mortais, de buscar reviver momentos idos, de valorizar as experiências e a sabedoria que o homem deixou conosco para que as guardássemos com carinho e as distribuíssemos e multiplicássemos prodigamente. No caso do Francisco, foi uma vida de jogador de futebol: a juventude nesta Ilha de Santa Catarina que ele tanto amou, as passagens como profissional do Direito Trabalhista por Criciúma e Blumenau, a prisão em 1º de abril de 1964, o cárcere no quartel da PM de Santa Catarina e na Penitenciária Estadual, ambos em Florianópolis, e no quartel da PM do Paraná, em Curitiba, de onde logrou fugir de forma audaciosa, e, depois, numa sucessão quase estonteante, países como Bolívia, Chile, Bélgica, República Dominicana, Honduras, Equador, México, Paraguai, Moçambique até a permissão de retorno ao Brasil, em 1980, sob o amparo da Lei da Anistia. De volta ao País, como conta o filho Rodrigo Dias Pereira, Francisco ainda "participou, no exterior, de algumas missões de organismos da ONU, aos quais esteve ligado durante o exílio, em projetos de desenvolvimento de curta duração; evitava convites para permanências mais longas, pois não queria ficar longe do Brasil." Em seguida, precisou passar por São Paulo, Brasília e Porto Alegre antes de conseguir fixar-se de novo em Florianópolis, já em 1988, e, coincidentemente ou não, retomar sua atividade literária.

Quanta coisa para contar!

No entanto, às academias e aos leitores importa em primeiro lugar a obra. A obra é que concede ao escritor a sua efêmera imortalidade. O legado cultural que Francisco transfere aos nossos cuidados também pode ser considerado quase estonteante: vai de uma forte militância jornalística, que inicia aos 19 anos de idade - aos 21 anos, em 1954, recebia da Delegacia Regional do Trabalho o registro número 187 de jornalista profissional em Santa Catarina - até a fundação da Editora Garapuvu, em 1996, da qual se fez editor. De permeio, são 17 livros de sua autoria e a participação em, no mínimo, sete coletâneas, os quais contemplam desde trabalhos literários a obras de reflexão sobre a realidade dos povos e países em desenvolvimento, com foco muito nítido na América Latina e na África pós-colonial e, portanto, na África conturbada, irmã mais nova que revive nossas atribulações de latino-americanos. "Dependência e Militarismo no Brasil", de 1971, é editado em francês na Bélgica como fruto da sua tese de Mestrado em Ciências Políticas, defendida com sucesso na Universidade Católica de Louvain - mesma universidade belga, aliás, que lhe concede o Diploma Especial em Sociologia do Desenvolvimento em curso de pós-graduação pelo Instituto de Estudos de Países em Vias de Desenvolvimento. Aqui - vê-se com meridiana clareza -, em meio à obra insinua-se o homem: ciências políticas, dependência, militarismo, sociologia, estudos, "países em via de desenvolvimento" e, especialmente, Brasil, são palavras e expressões que o homem Francisco, que as preocupações intelectuais de Francisco e que a vida de Francisco levam para a obra do escritor Francisco Pereira.

Quanta coisa para ler!

O inventário não é pequeno, mas é superado, porém, pela importância dos seus textos. No ano de 1974 surge, em Tegucigalpa, capital de Honduras, um estudo sobre "As Três Revoluções Agrárias" na América Latina, a saber, a do México, em 1910, a da Bolívia, em 1952 e a de Cuba, em 1959. Na mesma cidade hondurenha já surgira, no ano anterior, um cidadão de nome André Dias Pereira, seu terceiro filho. Rodrigo, o segundo, nascera em 1966 durante o exílio chileno, enquanto o primogênito, Francisco José Pereira Filho, é ilhéu de janeiro de 1964, ano crucial para o nosso ilustre e saudoso homenageado desta noite e para todos os brasileiros - inclusive para aqueles que só vieram a nascer muitos anos depois.

Como percebem os prezados Senhores, as amáveis Senhoras, encontro imensas dificuldades para separar o homem da obra, e vice-versa.

Tentarei ser objetivo para não levar esta noite até a madrugada, apesar dos merecimentos para tanto que acumulou o nosso Francisco.

Voltemos, pois, a Tegucigalpa e a 1974, quando a Revista da Universidade de Honduras publica um ensaio do catarinense Francisco José Pereira sobre os "Aspectos Políticos do Desenvolvimento Econômico na América Latina". Em 1976, no Equador, sai seu estudo que aborda "Noções Elementares sobre Métodos e Técnicas de Investigação Social". Já "As Organizações Camponesas no México", em publicação da agência da ONU para a alimentação e a agricultura, a FAO, sai em 1978 no próprio México. "Cinco Modelos Teóricos de Reforma Agrária", em coautoria com o jornalista baiano Clodomir Santos de Morais, parceria que Francisco tinha em altíssima conta, aparece na Nicarágua em 1981. Já em terras brasileiras, durante sua gestão na Superintendência da SUDESUL, em Porto Alegre, vem à luz, em 1987, o estudo em que Francisco discute "A Questão Regional". Há, ainda, a participação do nosso homem em uma coletânea de ensaios, publicada em 1989 pela Editora da UFSC e SUDESUL, de título "A Questão Agrária e o Desenvolvimento Nacional". O destaque nítido para ele, o seu maior orgulho nessa área de não-ficção, é a livro "Apartheid - O Horror Branco na África do Sul", ensaio que saiu em 1985 pela importante Editora Brasiliense, de São Paulo, como o volume nº 102 de sua prestigiosa coleção "Tudo É História". Esse livro do Francisco chegava em 1994 à sua 6ª edição. Como se percebe, efetivamente uma vida de jogador de futebol que relacionasse os títulos conquistados nos clubes pelos quais passou...

Senhoras e Senhores,

Há em Francisco Pereira o literato que desde a "tenra juventude", como se dizia, buscava exprimir os seus anseios e o seu idealismo através da ficção. Nascido nesta Florianópolis em 3 de abril de 1933, ele estreia aos 21 anos com um conto que não veio a publicar novamente, de título "Dilema", que saiu na Revista "Bússola" em 1954. Depois, entre 1955 e 1959, justamente em paralelo ao curso que completou na Faculdade de Direito de Santa Catarina, foram contos nas revistas "Sul" e "Litoral", no jornal "Roteiro", no suplemento "Letras e Artes", do jornal "O Estado", todos daqui, e no jornal "O Semanário", do Rio de Janeiro.

Depois, foi a atividade profissional incipiente, como já se disse aqui, em Criciúma, como advogado do Sindicato dos Mineiros, e em Blumenau, com banca própria, porém sempre voltado aos pleitos dos operários das indústrias do Vale do Itajaí, que tivessem reclamações contra os patrões - Francisco jamais patrocinou causas dos empresários, o que lhe valeu boa dose de má vontade e até ameaças veladas à sua integridade física.

A seguir, 1964 abateu-se sobre ele e sobre todos nós. Sem jamais haver pegado em armas, sem jamais haver violado a Lei, sem jamais haver sido desonesto, Francisco José Pereira foi preso no dia 1º de abril, às vésperas de completar 31 anos e com um filho de três meses de idade no colo da adorada esposa Natália, com quem estava casado desde 15 de dezembro de 1962, apenas, e a quem deixou viúva em 2 de julho de 2012. Seu crime horrendo foi acreditar na possibilidade de uma sociedade mais igualitária e justa, foi dedicar sua atividade profissional à correção das injustiças contra os desprovidos da sorte, foi abraçar o comunismo como ideal de vida.

O comunismo foi a resposta prática que Francisco encontrou para atender às suas convicções humanitárias, às suas leituras juvenis e aos seus ideais de justiça e fraternidade. Ao contrário da maioria dos políticos que hoje conhecemos, Francisco jamais abandou suas crenças ideológicas, jamais mudou de rumo em nome de interesses pessoais, tanto que, de 1994 a 1996, tornava-se presidente estadual do PPS, o Partido Popular Socialista, que veio a suceder ao PCB, o Partido Comunista Brasileiro. Sua adesão ao "partidão" se deu no primeiro ano da faculdade, em 1955. O que já era uma inclinação íntima, consolidou-se com a leitura de alguns livros que lhe foram facilitados por amigos militantes. Findas as leituras, decidiu-se pela filiação e comunicou formalmente sua adesão ao partido, que foi aceita. E isto, essa aceitação assim pura e simples, foi grande frustração para Francisco.

- Então estou aceito no partido? - perguntou.

- Sim, estás. A partir de agora, és comunista – responderam-lhe.

Francisco não se conformava:

- Eu quero assinar a ficha, quero a minha carteirinha do partido!

Tiveram que convencê-lo de que bastava a palavra, e de tinha de ser assim porque pensar tanto à esquerda era coisa para ser mantida em segredo, posto que o PCB estava na ilegalidade.

Senhoras e Senhores,

O ficcionista voltou com a volta do autor à Ilha. Como se a compensar tanto tempo longe das letras literárias, Francisco não descansou mais.

O romance histórico "As Duas Mortes de Crispim Mira" sai em 1992. Crispim Mira é o nome da rua da sua infância e adolescência em Florianópolis. Crispim Mira é o patrono da Cadeira nº 5 desta Academia, assento que Francisco passa a ocupar em 30 de junho de 2005.

"Desterro de Meus Amores" é livro de contos que aparece em 1993.

"Um Ônibus e Quatro Destinos", de 1994, é uma experiência de romance escrito a seis mãos, com o concurso de outros dois nomes exponenciais da ficção catarinense: Holdemar Menezes e João Paulo Silveira de Souza.

Outro romance histórico vem a ser "Voo da Morte", publicado em 1995.

Em 1996 Francisco nos entrega três obras: sua participação na coletânea de contos "Este Amor Catarina" (Editora da UFSC), a fundação da Editora Garapuvu e a organização da coletânea "Os Dez Mandamentos", com contos de escritores catarinenses, pela Garapuvu e com sua participação.

Também pela Garapuvu, ele organiza as coletâneas "Contos de Carnaval" (1997), "Sete Estações da Loucura" (1998 e da qual não participa como contista), "Círculo de Mistérios - O Conto Policial Catarinense" (2000), "Nossos Melhores Contos" (2003, para a qual escolhe um texto de ficção pelo qual ele sempre demonstrou uma profunda simpatia e que, verdade seja dita, muito bem representa sua eminente arte literária e resume sua concepção de vida, baseada nos valores sagrados da amizade e da compreensão entre os homens, que levam o protagonista a abdicar de vantagens pessoais em nome da lealdade; trata-se do magnífico conto "Tesourinha não perdia pênalti") e, sua contribuição derradeira como cidadão, como editor e como escritor, o volume "Nem Sempre Foi Assim - Contos dos Anos de Chumbo", em 2007, quase como uma obrigação que Francisco se impunha de dar um testemunho, juntamente com outros autores que comungavam de semelhante visão histórica, deste nosso País.

Como obras suas, Francisco ainda nos dá, pela Garapuvu, os contos de "O Pardieiro", em 1999, obra premiada por esta Casa como Melhor Livro de Contos daquele ano, "Destinos Sem Repouso", contos, em 2001, "Havia Estrelas no Céu (e outros contos selecionados)", de 2003, e "O Tempo de Eduardo Dias - Tragédia em 4 tempos", de 2005, uma dramaturgia histórica que exigiu dois anos de trabalho intenso para ficar pronta, consumiu quase 20 horas de entrevistas gravadas e partiu de mais de 2.000 fotografias de revistas, livros e jornais antigos, escrita em parceria com este que tem a honra de vos falar, e que levou míseros 40 minutos para ser destruída por três processos judiciais, um dos quais se arrasta até os dias de hoje.

Como coroamento de uma vida literária, Francisco publicou, sempre pela Garapuvu, seus "Contos Completos", em 2006, em bela edição de capa dura, abrigando, porém, apenas 31 dos seus contos: da obra ficaram de fora, por motivos que não são conhecidos, três textos, inclusive "Dilema", o conto da sua estreia em 1954, além de "O Velho Realejo", escrito especialmente para a coletânea "Nem Sempre Foi Assim", posterior a esta reunião de contos completos.

Senhoras e Senhores,

Estimada Natália, filhos, netos e noras do nosso grande Francisco José Pereira,

Vejo que, por alongar-me demais, a madrugada já se aproxima. Desculpem-me pelas falhas destas pobres palavras com que procurei dar conta da missão que a Academia Catarinense de Letras me incumbiu de levar a cabo. Queria dizer-vos, muito rapidamente, não mais do que duas coisas.

Existem ainda dois outros Franciscos: o da família, que fica por conta do filho André nos revelar, e o amigo com quem convivi, em maior ou menor grau, desde 19 de novembro de 1992, no lançamento de "As Duas Mortes de Crispim Mira" - este fica guardado no meu coração e no coração da minha família, tanto cafezinho tomamos lá em casa nas tardes em que revirávamos a vida do pintor Eduardo Dias, ocasiões em que ele sempre aproveitava para rever o seu amigão de 3 anos de idade, o meu neto Caio.

Por fim, a segunda coisa: escritor é mesmo um perigo, sempre dá um jeito de se vingar. "Ele era Tenente da Marinha. Filho de Almirante." Preso pelos militares em 1964, Francisco não perdoou: "A moça cedeu, afinal. E só não foi mais infeliz, porque teve 18 amantes."

Obrigado.

(Amilcar Neves)

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Amilcar Neves, envolvido com a criação de uma nova novela, é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com.

"Somente teremos discussões salutares neste País se respeitarmos a História."

Eu Mesmo, em 17.04.13, respondendo a e-mail sobre golpe de 1964 e ditadura de 21 anos.