Garotos perdidos

De onde eu venho, você podia ir a uma de nossas festas e constatar: éramos os Meninos Perdidos modernos. Tínhamos nossa casa na árvore, ou seja, um clube noturno qualquer, em que nos reuníamos uma vez por semana ou mais, sem pais ou adultos – adultos de verdade – ou qualquer forma de lei; gostávamos de pensar que era cada-um-por-si, mas é claro que havia a figura superior, um Peter Pan drogado de trinta anos na cara, nunca nas roupas. A adoração a ele era relativa e superficial, como tudo ali: queríamos ser como ele naquele momento, mas a opinião geral era de que ele fora longe demais.

Nós ingeríamos o que desse na telha, isto é, drogas e álcool. Havia música, todo tipo de música; de preferência que pouca gente conhecesse e/ou que exaltasse nosso “estilo de vida”. Quase sempre a última tendência nas pistas de alguma cidade europeia que jamais visitaríamos.

Dançávamos, e como! Qualquer dança era encorajada, quanto mais alucinada melhor, o que emprestava às festas uma sensação geral de uma tribo selvagem. O que, evidentemente, não éramos. Nenhum dos Garotos Perdidos passara fome uma vez na vida e poucos trabalhavam.

A maioria (alguns realmente tinham uma cultura desprezível) era intelectualizada, mas não intelectual. Faltava-nos o senso crítico, no fim das contas, e a guerra contra o establishment não passava de conversa de adolescente bêbado. Às vezes você encontrava um que mal conseguia formular frases direito, talvez pelo estado intoxicado, mas tenho para mim que falavam como crianças hora ou outra, trocando ou repetindo palavras, “comendo” letras, cometendo erros grosseiros de gramática.

E de vez em quando ninguém falava coisa com coisa.

Um sentimento tremendo de superioridade pairava sobre nós. Afinal, éramos, segundo nós mesmos, os mais bonitos, inteligentes e cool da cidade; ouvíamos música pseudocult ao invés “desse lixo todo que toca no rádio”, desprezávamos nosso país e nossa cidade e as “massas”. Ocasionalmente alguém botava pra tocar uma dessas músicas “baixas”, como funk, ou algo brega, e todos nós nos olhávamos e ríamos com desdém, entendendo a “ironia” do disc jockey – DJ é para os outros. Mas sem parar de dançar, afinal, precisávamos fazer valer os cinco reais tirados dos nossos pais para pagar a entrada.

Éramos unidos, mas não leais. Se alguém mexia com o grupo, com a cena, todos caíam em cima como uma matilha, mostrando os dentes de leite já amarelados pelo cigarro, e aquele bando de garotos, garotas e andrógenos fazia discursos bonitos sobre amizade e defender seus iguais, “que gente escrota, nem sabem se vestir direito e vêm falar da gente, voltem pro Orkut e nos deixem em paz”. Mas o assunto era bem diferente em se tratando da relação entre cada integrante, o que nos fazia uma bomba-relógio dançante.

De vez em quando essa bomba ameaçava mandar tudo pelos ares, mas, como disse, era tudo tão superficial que uma semana depois as crianças emburradas já trocavam elogios afetados normalmente.

É claro que estou generalizando, como generalizávamos “os outros”. Dentre os Garotos Perdidos eu conheci amigos e paixões, e também há quem mereça muito respeito, quando você olha além das lentes falsas dos óculos vintage e percebe que, tirando os robôs – que existem por toda parte –, há algumas pessoas ali, pessoas de carne e osso, crianças que caíram de seus berços cedo demais e estão tentando achar o caminho de volta pra casa. Para seus pais. Sentem falta de comer a comida da mãe e ir pra cama cedo, contentes e saudáveis.

E o que os Garotos Perdidos se tornaram anos depois? As fantasias de bichos selvagens que usávamos quando novos aderiram à pele, e o que encontro vez por outra na rua – e no espelho – são animais reais, uma versão sólida e quase finalizada dos esboços que eu só conhecia sob luzes alucinantes de danceteria. Leões, corvos, lobos, ovelhas, gatos, pavões: uns conseguiram ser plenamente desmamados. Outros voltaram ao ninho; alguns continuam na toca na árvore, como os novos reis das novas gerações perdidas.

Depois de ter trocado a carreira promissora como Artful Dodger por uma aceitação pacata da realidade, eu observo o mundo fora da Terra do Nunca, tomando meu pacato chá vestindo um pacato pijama, e de repente dou o braço a torcer.

A vida é fria demais se um senhor não acredita em fadas pelo menos uma vez ao dia – e ainda assim há uma bela caralhada de senhores que desprezam até mesmo a fada do absinto. É em solidariedade a esses tipos que muito tempo atrás alguém criou a instituição dos meninos sem pais: para criar, fugir do sério, rir, fazer rir, ser ridículo, ser criticado, ser incoerente, ser selvagem, ser errado, ser louco, ser hipócrita, ser corajoso, ser pilantra, ser novo, ser orgulhoso, ser feliz, nem que só enquanto durar o efeito da cerveja. E, nesse sentido... Eu os amo, e admiro. Sempre houve Meninos Perdidos, e em nome do bom futuro, sempre vai haver os que se sacrificam pelo hoje à noite, pela arte, pela beleza, por ensinar aos outros como voar.

Então, talvez, quando escurecer, eu tire meu pacato pijama e saia de meu pacato apartamento e deixe a pele de animal que cultivei naquele velho clube noturno qualquer respirar de novo.

Afinal de contas, uma vez Garoto Perdido, para sempre Garoto Perdido.

Valentina Caligari
Enviado por Valentina Caligari em 25/11/2013
Reeditado em 25/11/2013
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