Viver é não Viver!

Eu_ um simples de espírito, um idiota, minha própria revelação divina e humana, sou o messias de minha própria destruição. Sou uma pausa no incurável, uma lepra no meu espírito moral, um idiota que experimenta uma iluminação e que instala em minha alma um meio de sair de tudo e de mim mesmo, e me instalar nas percepções herméticas da estupidez que se auto-ignora em cada almoço, em cada diálogo. Sou vítima dessa claridade que me sufoca, e eu não sei o que fazer desse dia que parece nunca acabar e nunca começar. Quando se percebe que nenhum motivo humano é compatível com o infinito e que nenhum gesto vale a pena ser esboçado, meu coração já não pode ocultar minha vacuidade.

Por que não tens a força de te subtrair à obrigação de respirar? Por que aguentar ainda este ar solidificado de fezes humanas em cada palavra e ações que bloqueiam teus pulmões e se despedaça em tua carne? Como vencer essas esperanças opacas e essas ideias petrificadas quanto, alternadamente, imitas a solidão de uma rocha, ou o isolamento de um escarro fixos das cordas do mundo em cada relação com essas coisas que chamamos de “pessoas”?

Tu estás mais afastado de ti mesmo do que de um planeta não descoberto, e teus órgãos, voltados para os cemitérios, invejam teu dinamismo capitalista e religioso. Cortas tuas veias para inundar esta folha que irrita o fogo moribundo que ainda fumega em teu coração. Aborto de lábios mudos e secos, permanecerás para além do ruído da vida e da morte, para além do ruído das minhas lágrimas. Minhas mãos tremem, aceleramento das batidas cardíacas, jorram rios de medo e de adrenalina em meu sangue: ainda estou vivo sem saber nada, e meus olhos ainda sabem chorar pelas pessoas que tanto amei, e ainda amo.

De todos os fins propostos a existência, qual, submetidos à uma análise profunda, poderá escapar à comédia ou ao necrotério? Qual nos revela a tamanha capacidade de sermos fúteis e sinistros? Quem achou algum dia uma só verdade alegre que fosse válida? Que salvou a honra do intelecto com propósitos diurnos? Feliz daquele que pode afirmar para si mesmo: ”Meu saber é triste e infecundo”.

Ter uma Consciência crítica e panorâmica? Exercer nossos escrúpulos morais e éticos nos relacionamentos, na educação dos filhos, em cada ambiente, seja doméstico, público, social, no trabalho, nas interações humanas? Não me faça ri. A consciência está morta há muito tempo nesse mundo seu idiota retardado que não enxerga os interesses mesquinhos de cada um, a consciência que só pensa em seus próprios benefícios, vantagens e alegrias, e quando pensa em ajudar ao outro, pensa nos galardões que receberá na outra vida, tudo são motivos idolatrados pelo próprio ego,_ ego esse sempre vazio e cheio de fomes; a consciência que não cheira as mentiras cheias de boas intenções de cada cristão ou ateu, ou em qualquer parafuso que seja algo útil na sociedade; que não percebe os teatros de persuasões em cada semblante de afeto ou de compreensão; essa consciência que não apalpa os embustes em cada ação aparentemente fraterna, em cada pensamento cenicamente intoxicado com pinturas e mentiras de civilidade e de conhecimentos; a consciência jaz morta no próprio corpo humano, e quem diz tê-la e usá-la está a mentir para si mesmo, e para os outros ao se redor. Celebre minha rara amiga o enterro de sua própria consciência a cada sete dias, e depois finja usá-la para seus propósitos benéficos. E vou com você também nesse carnaval de mentiras e de embustes eufemizados.

Olho para um prego e ele me sussurra: atravessa-te o coração. A faca que está em cima da mesa ainda melada de manteiga insinua seus olhos luminosos a mim, e me diz: “minha lâmina é infalível. Vem, um segundo de decisão e triunfarás sobre a miséria e a vergonhas do teu enfermo existir”. E uma corda se enrosca como sobre um pescoço ideal, assumindo um tom de força que me suplica: “espero-te desde sempre, assisti aos teus terrores, contemplei em silêncio teus abatimentos e aflições, vi teus crimes e quedas, e ouvi claramente tuas lamúrias e tuas blasfêmias contra toda forma de algo existir. Caridosa, tenho compaixão de ti, e te ofereço meus serviços meu amigo”. Reluto para a corda e para todos, e olho as cinzas do meu amanhecer que nunca chega.

Preciso dormir um pouco: dormir de meus conflitos, dormir de minhas estranhezas, dormir de meus fracassos, dormir do que meus braços tentaram alcançar, mas tudo foge de mim; preciso dormir dessa minha covardia, dormir de minha existência morta; preciso dormir das punhaladas que sofri daqueles que tanto amei; preciso dormir de meus sentimentos e emoções que meu coração persiste em pulsar em minha alma neste mundo mundo onde quase tudo são trocas mercantis e monopolizações de afetos, de fluidos orgânicos, de amores enferrujados, de amizades e interações narcisistas; preciso dormir de mim mesmo, e não sonhar com absolutamente nada. Preciso dormir deste meu estar acordado o tempo inteiro, e sempre pensando e sentindo e escrevendo e agindo e sendo isso e aquilo; vou dormir, preciso dormir, já que a vida apenas uma única vez olhou para o meu heteróclito ser, e rindo de mim, foi embora para outras casas e para outros corações. Pensei demais.

Preciso dormir do meu próprio sono de nada ser, e tudo sentir nesse poço o qual é essa minha alma_ poço abandonado com tantas ideias, pensamentos, idiotices, sensibilidades, empatias, preconceitos, ciúmes, raivas, compreensões, e de amor que transbordam em vão de meu ridículo ser. Vou dormir e desaparecer tanto em meus sonhos quanto em meu leito, é melhor.

A ideia do Nada não é o apanágio da humanidade laboriosa: os que trabalham não têm nem tempo e nem vontade de avaliar seu próprio pó; resignam-se às durezas e as responsabilidades e as covardias do inevitável. A esperança é a virtude dos escravos. De onde venho, não sei dizê-lo; nos lares nunca encontrei família alguma; nos bares, nenhum narcótico apaga esse vácuo que corre e se expande como uma luz enevoada em minha alma; nas cidades, nos templos, nas esquinas, nenhum amigo para socar pelo menos esse meu rosto burlesco e decrépito. Preciso me livrar desta vergonha dos meus atos e pensamentos e convivências que só envenenam lentamente meu corpo; as comédias tristes da ressurreição a cada manhã, e as angústias solitárias do enterro a cada entardecer que achamos não sentir e que nem se quer ver. Sonho em querer tudo, mas tudo o que quero me parece sem valor, não é bem sem valor, mas me acho indigno de tudo e de todos.

Como um vândalo corroído pela melancolia, dirijo-me sem fim, eu sem nunca estar comigo mesmo e nem com nada, dirijo-me na direção de um silêncio pleno e absoluto, quem sabe para descobrir um deus abandonado e desconhecido até por si próprio, um deus que seja ateu de tudo, e quem sabe eu adormeça eternamente nos braços desse ser impossivelmente real, abandonado, desconhecido, tão triste e niilista quanto eu sempre fui antes mesmo de ter nascido, se é que algum dia eu me senti nascido para alguma coisa nessa desilusória vida.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 05/01/2014
Reeditado em 05/01/2014
Código do texto: T4637268
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