“O AMOR É BRANCO”: REFLEXÕES SOBRE AFETIVIDADE E FEMINISMO NEGRO EM 2017*

Começo aqui a contar uma história que não é só minha (veremos) mas de muitas outras irmãs.

Fui, durante toda minha infância, cega frente ao fato de que os meninos gostam mais das meninas brancas. Um dia escutei do menino mais bonito da turma que caso eu cedesse o lugar na mesa para outra garota de quem ele gostava ele me daria um desses brindes de cheetos. Não lembro o que veio depois disso.

Mas então veio a adolescência e o menino mais malandro da turma se interessou por mim: em meio aos beijos e outras carícias ouvi dele “eu não quero nada sério com você não, viu, Vanessa”. Não entendi nada no dia.

Jovem, percebi que se uma mulher preta da periferia aparece com dinheiro isso significa que ela arrumou em qualquer jogatina ou lance ilegal (lê-se “prostituição”), nunca com a dignidade, quando um namorado da época disse que não sairia comigo e nem queria que eu pagasse nada com aquele dinheiro que ele “não sabia de onde eu tinha tirado”. Nesse dia eu reagi, e poderia ter reagido pior mas só queria ir pra casa contar à minha mãe que tão generosamente havia tirado um pouco do seu lucro com cabelos e unhas que faz aos sábados e dado para que eu pudesse sair e me divertir um pouco com meu namorado. Nunca contei isso para ela. O amor é branco para muitas de nós, mulheres, jovens, pretas, lésbicas, durante uma boa parte de nossa vida afetiva. Nos interessamos pelos rapazes brancos, pelas moças brancas, e essxs também se interessam por nós. Acredito que parte desse interesse não tem muito a ver com amor, mas com outro tipo de sentimento enraizado e entranhado no modo como o mundo se relaciona (não só afetivamente) com as mulheres pretas. Algo talvez que esteja ligado àquele tempo em que tínhamos uma função tridimensional num sistema de escravidão aí, servindo de ama de leite à escrava sexual (o termo é escrava, sim, sem abrandamentos de teses embranquecidas que dizem haver certa proximidade, certo acordo, certa humanidade na relação de escravidão sexual vivida entre a mulher negra escravizada e o homem branco senhor de engenho). E, visto que um grande paradigma era o da mulher branca vista enquanto um modelo de pureza e castidade moldado em comparação à virgem maria cuja envergadura naquele sistema e naquele tempo histórico também colocava medo nos homens a partir da proibição de concupiscência, lhes causando temor e ódio (o ranço da misoginia pode ser visto nessa leitura contida em Audre Lorde) colocava para essas mulheres brancas uma função procriadora santa e, por que não dizer, geradora da sociedade e dos herdeiros legítimos, em grande parte pela mola propulsora do capitalismo e da seguridade da propriedade privada. À mulher negra de olhos vazios a ser estuprada nas senzalas estamos ligadas por um fio histórico invisível porém muito tensionado que não há de se romper nunca (porque precisamos tê-lo na memória, ele é a própria memória).

Por tudo isso, penso: até quando nossos corpos (e mentes, pois não pensem que é só o corpo que eles querem, não) serão alvo de interesse do outro quando nós deveríamos ser as maiores interessadas em nossas mentes e corpos a ponto de rejeitar a objetificação, exploração e todo o lixo afetivo que nos dão travestido de amor? Eu creio que até o dia em que tomarmos consciência de que antes dessa etapa da vida, o amor recíproco, há uma etapa mais importante que é muito de nós e para nós (nosotras para nosotras, pois pela presença do artigo no feminino dá um som aconchegante): a tomada de consciência. Depois a prontidão e o estado de alerta diário. E por fim, a estratégia de luta: o feminismo, que é um caminho, uma experiência concreta, árdua, de encontro e desencanto consigo e com outrxs, que como diz uma atriz soteropolitana (ou grapiúna), “não é videogame”; cujo objetivo é sair do papel e das palavras redondas e bem colocadas no sintagma, e isso a gente faz vivendo e tendo consciência inclusive de nossas limitações. Avançar sempre, mesmo que nos faltem mãos para nos segurar e dar apoio. O feminismo negro (porque o feminismo não é um só) tem me ensinado a partir das leituras e da convivência em casa com mainha, que preciso ser só mas me saber acompanhada, guiada e orientada (palavra bonita com esse prefixo “ori”, de cabeça); eis a vertente que me reconciliou com o feminismo. Antes de nós, pretas, vieram outras e que também foram consideradas só “corpo sem mente”. Alguns desafios se colocam pra gente nesse momento histórico e precisamos aceitá-los como tarefa individual e coletiva, no cuidado de si e no cuidado com nosotras. Cuidado (nessa dupla conotação que evoca) é a palavra de ordem. E cuidado também aos que desejam nosso fracasso, que tramam nosso recolhimento permanente às prisões domiciliares e cognitivas: não estamos de brincadeira. É uma questão de vida que não seja o centro das nossas vidas o amor barato e romântico, mas o blindar de nossos corações e a emancipação da consciência. Eis o que eu tenho feito.

“Feminismo das preta, bate forte, mó treta.” (Drik Barbosa)

*Texto da palestra "Feminismo interseccional - Mulheres Negras e os dilemas enfrentados em uma sociedade machista e racista" no II Seminário Recortes Identitários da Mulher na América Latina, em junho de 2017.

**A quem interessar possa, seguem algumas referências que balizaram a escrita desse texto e foram e estão sendo assimiladas aos poucos cujas ideias me vieram à consciência nessa escrita não planejada: Mulher negra – afetividade e solidão (Ana Cláudia Pacheco Lemos); Intelectuais negras (bell hooks); Não sou eu uma mulher? (Audre Lorde); Vozes literárias de escritoras negras (Ana Rita Santiago); A organização das feministas negras no Brasil (Núbia Regina Moreira); O “hediondo” dos crimes hediondos (Denise Carrascosa); A mulher na sociedade de classe: mito e realidade (Heleieth Saffioti).

Vanessa Caroline
Enviado por Vanessa Caroline em 10/05/2018
Código do texto: T6332674
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