O SONHO-PARÁBOLA PERFEITO

Publicado originalmente em 10 de fevereiro de 2009

Proletários de todas as idades – falo de crianças e idosos, como no século XIX – e dos dois sexos, e uma voz que ecoa pela escadaria como se por um alto-falante ou por um sistema de rádio. Todos em trapos e inclinados à rebelião, exceto este austero homem da voz, devidamente engravatado. Firme, seguro. Ele representa o Capitalismo. A massa representa não o marxismo, a democracia ou o mercado de trabalho, abstrações: trata-se do homem, da condição humana. E os homens, em bloco, se bem que caóticos, descem as escadas. O ricaço – este anti-próton, antípoda da existência, que se aglutinou a nós, que se tornou desde tempos imemoriais nosso pastor – contempla, maravilhado. A escravidão em sua modalidade mais explícita me foi mostrada neste sonho-espelho. Não faz muitos dias, ou semanas, que ando tendo essas incursões filosóficas até mesmo na esfera inconsciente. É sinal de alguma coisa: essas questões se apoderaram da parte mais funda do meu espírito, da minha essência.

É como se o prédio se incendiasse e fosse posto em prática nesse exato momento um plano de evacuação, orquestrado pelo sujeito polido. Uma crise do sistema, uma desordem social, que logo será contornada, para que tudo volte a se assentar, como antes, ou mais que isso: em bases mais sólidas. As pessoas parecem saber disso, mas não há alternativa. Alguns, mais insurgentes, crêem que depois de hoje nada será como fôra, a verdadeira revolução se aproxima. A exploração sepultada? Meu sonho penetra no verídico devaneio de bilhões de homens no decorrer da História.

Algo, no entanto, paira insondável. Aliás, ao invés de estático este algo talvez seja dinâmico, fluido, movimentado, eficiente, faceiro, sábio, sério e brincalhão na medida – uma entidade que opera com conhecimento total das circunstâncias, cujos propósitos até escapam à cena, algo que consegue enxergar além, uma origem e um destino do processo em curso – o momento da correria pelas escadas é o Ocidente, o mundo moderno. Esta criatura invisível, onisciente e observadora, o que é? Deus? Não, óbvio demais… Sou eu! E afora alguns detalhes meu sonho – eu diria extraordinário vislumbre alegórico – não avança mais do que isso…

Vamos aos detalhes: o grande proprietário, a burocracia de carne, rosto bem-aparentado, sorriso elegante, bom porte, enseja organizar seus soldadinhos em batalhões de diferentes tamanhos, de acordo com faixa etária e gênero. Há, como já mencionado, um burburinho, um mexerico, uma espécie de pólvora que promete comprometer essas fundações e que, depois, venha o que vier. A taça cheia precisava derramar seu conteúdo. Antes que as filas se organizassem como pedia a voz, tudo se desvanecia e eu acordava…

Às interpretações: o que é que diferencia os planos da massa dos meus diante desse “filme”? E o que faz de mim um antagonista invencível para este homem, enquanto só os operários com suas vontadezinhas imediatistas não passam de brinquedos sob rígido controle do dono? Eu sou a perfeição, diviso até uma das aparências ocultas desse homem engravatado: não é mais esbelto e galante, mas um gordo de cabelos encrespados, uma figura feia e áspera daquelas ante as quais se deve cuspir no chão ao se lhe dirigir a palavra, ou engolir em seco, caso seja seu patrão. O semblante de um obeso que promove o escárnio, ri sozinho e mata com suas piadas: o inimigo da sociedade há dois milênios.

O que vai acontecer é que eu vou combater este centro de poder com o único contragolpe à altura: ele mesmo. Os homens que rolam escada abaixo não podem tentar queimar suas fábricas, destroçar o Capitalismo: este último sempre triunfa. Eles devem sê-lo. Devem se fundir com a figura sebosa do capitalista: milhões de homenzinhos iguais, com a testa engordurada, um sorriso doloroso, o terno passado e justo, a conta no banco tão gorda quanto a própria silhueta. Isso traz à tona um diálogo – mais para lição, nada amigável – que tive há meses com um estudante de serviço social, engajado na promoção da “justiça social”. Agora sim, com todos se comportando de modo pragmático, lucrando e lucrando… tudo vai desmoronar! Essa é a função atual do sindicato: ser burguês. Tornar-se a burguesia (um estranho crossover, é verdade), a classe unificada, a última habitante deste planeta. Para então se auto-destruir. Nenhum Aquiles escapa à sua sina. Clones em marcha: logo o senhor Narciso se enfastiará da própria imagem.