ONTOLOGIAS DE UMA PROFESSORA

Maria Jeane Souza de Jesus Silva

Mestra em Educação e Diversidade (UNEB)

Eu não me tornei professora numa certa segunda-feira às 13h, numa escola de 6º ao 9º ano, lecionando apenas aulas de Língua Portuguesa e Língua Inglesa. Eu não me tornei professora apenas como alfabetizadora nos dois primeiros anos de minha profissão, ou na experiência vivenciada como coordenadora no Pacto Estadual pela Educação. Eu não me tornei apenas professora trabalhando com a formação docente nos cursos de Licenciatura em Pedagogia. Eu não me tornei professora com o/a aluno/a que senta na primeira fileira e não saluta em abrir o caderno ou o livro e que tem notas excelentes (embora eu tenha aprendido muito). Eu não me tornei professora com aqueles/as alunos/as que todos os dias entram no horário marcado na sala do Google Meet com a câmara aberta, diálogos profícuos (embora eles/elas sejam tão importantes quanto).

Eu sei cada rastro, cada pista, cada vereda, cada trilha, cada experiência lograda e cada 'escrevivência' para me desbravar/tornar-me professora (ainda me tornando) desde 2002. Eu lembro de cada gelo na barriga, cada frio no estômago (todo 1º dia do ano letivo). Eu lembro de cada aula, cada planejamento, cada tessitura emaranhada na memória até chegar a hora, não as horas mortas, aquelas que não podem ser ressignificadas, replanejadas. Usando um termo de Deleuze e Guattari, é um inter-ser, intermezzo, uma ontologia do SER/sendo do TORNAR-SE/tornando.

As pistas que transcendem as horas/tempos/espaços/arranjos, vivenciados na escola (física) ou na rede (ciberespaço) traz agenciamentos, imprevisibilidades alhures, que às vezes não estão no currículo formal da escola - instituição para a qual os interesses da sociedade se voltam - e respinga diretamente neste espaço, uma práxis educativa que reverbere o repensar as contingências cotidianas, dadas às diversidades, pluralidades e dinamicidades do ensino, especificamente para aqueles que por tantas questões, não conseguimos incluí-los. Se bem que há uma profusão entre o binômio inclusão/exclusão que se constitui como uma arena de disputa insurgentes (sobre essa questão eu amplio em outro texto).

Por falar em insurgência, peço licença ao leitor para partilhar uma das aulas que mais marcaram a minha vida, pelo menos em 2018. Estamos na semana do dia do/da professor/a (embora eu ache que são todos os dias), escolhi dentre tantas experiências profundas ao longo do magistério (embora eu só tenha trilhado a metade do caminho), uma certa aula sobre ‘FAMÍLIA’ que virou ‘AULA - FERNANDINHO BEIRA-MAR’. Trago este enredo porque são tantas memórias, e acho que não caberiam em um só livro. Pois bem, era uma segunda-feira, último horário numa turma de 6º ano, o texto trazia uma discussão sobre os “MODELOS DE FAMÍLIAS”. A aula era do componente de Língua Inglesa intitulada como “My family”.

Você, caro leitor, pode imaginar uma professora que planeja uma aula sobre 'família' e sua aula vira ‘AULA FERNANDINHO BEIRA MAR?’. Eu não sabia direito quem era Beira-Mar, mas eu tive o privilégio de um dia ter um professor que em uma de suas aulas na Pós-graduação, falou de muitos livros que o tal Luiz Fernando da Costa já havia lido, e que nós professores/as precisávamos devorar. “Não deixem de ler alguns best-sellers que Fernandinho, preso, já leu e vocês “livres”, formadores de opinião, ainda não os leram”, brincava falando muito sério o professor.

Quando eu perguntei à turma como se configurava suas famílias, um aluno, sabe aquele aluno que te ensina a ser professor? Sentado no fundão da sala, boné virado, caderno fechado, belisca o colega do lado, irrita o colega da frente, sobe na cadeira, fecha a janela e tudo mais…! Então, ele não fez a atividade proposta, mas foi ele o protagonista daquela aula, ele não planejou a sequência didática, não iniciou a aula fazendo a frequência, mas foi ele, sem conhecer o currículo e o conteúdo formal previsto, foi ele quem lecionou ou pelo menos me deslocou, me fez pensar se realmente eu poderia reconfigurar um planejamento em átomos de segundo, utilizando a ‘gambiarra’ (improvisação em contextos pedagógicos) para poder prosseguir.

“Professora, eu não tenho pai, meu pai me abandonou e minha mãe é uma cachaceira, mas eu admiro Fernandinho Beira-Mar, e pra mim ele é um modelo”, salientou aquele menino em defasagem idade/serie. E agora, José? O que faria eu, mandava o menino calar a boca, arrotava os modelos patriarcais familiares, constituídos historicamente, culturalmente e ideologicamente? Engoli a saliva, contornei o nó na garganta, me restabeleci, puxei a cadeira e me sentei mais próximo deles. Se bem minha gente, que eu acho metaforicamente, que um dos problemas da escola é a mesa/carteira do/da professor/a, ela nos põe em um lugar de superioridade (falarei sobre isso em outro texto).

Sabe que eu tenho inveja de Fernandinho Beira-Mar? Disse eu à turma que me olhava assustada… O silêncio pairou e…, pense numa turma barulhenta!? Vocês sabem quantos livros ele lê na prisão por dia? Vocês conhecem o livro que virou filme chamado O Caçador de Pipas? Vocês já leram Cidade do Sol que é do mesmo autor? E o que dizer de O silêncio das montanhas? E tem outro livro que Beira-Mar já leu e que estou querendo ler, O Código Da Vinci, mas eu ainda não tive tempo...

E lá estava EU fazendo a relação de livros que o dito cujo já tinha lido, e lá estava EU contando a história do Caçador de Pipas, pois eles ficaram curiosos, acho que pelo título, talvez! Publicado em mais de 70 países e com a marca de mais de 2 milhões de exemplares vendidos apenas no Brasil, o tal aclamado livro conta a história da amizade entre Amir e Hassan, dois meninos que vivem no Afeganistão da década de 1970. Durante um campeonato de pipas, Amir perde a chance de defender Hassan, num episódio que marca a vida dos dois amigos para sempre (on-line).

No exercício da docência, nem sempre conseguiremos dar as melhores respostas, como canta Milton Nascimento em “Encontros e despedidas”: São só dois lados da mesma viagem

O trem que chega é o mesmo da partida

A hora do encontro é também despedida

A plataforma desta estação é a vida […].

Eu sei que eu não soube dar as melhores respostas para aquela situação, mas talvez, algumas perguntas me ajudaram a dialogar e, sobretudo, escutar melhor as vozes que ecoavam dentro deles, pelos menos aqueles que interagiram, se bem que o silêncio fala, e fala muito… São corpos, são mentes, são sonhos, são gentes. Ninguém é vazio!

Peço licença também ao leitor, para partilhar só mais uma de minhas memórias. Este arco narrativo se deu em 2021, neste contexto Pandêmico desencadeada pela Covid -19. Esse momento atípico jamais será lembrado da mesma forma por cada um de nós; esses dois anos intermináveis (2020-2021), ampliaram o fosso de desigualdades entre as famílias, principalmente em relação ao fator socioeconômico. Embora, adolescentes e jovens estejam cada vez mais imersos no ciberespaço, devido às Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) se apresentarem cada dia mais ubíquas, percebe-se uma fronteira que existe entre os alunos de escolas do espaço rural que, muitas vezes, não dispõem de meios tecnológicos, conectividade, acesso à internet banda larga, para realizarem atividades escolares e participarem de aulas síncronas e assíncronas, entre outras. (Eu destaco o espaço Rural por que este é meu locus de enunciação).

Era uma segunda-feira, aula de Língua Portuguesa que acontece quinzenalmente na sala do Google Meet com a turma, socialização de uma produção textual que partiu de uma Tertúlia Literária com outra turma, após a leitura do livro - Notas sobre o Luto de Chimamanda Ngozi Adichie. Chegou a sua vez de nos presentear com sua leitura, o palco é todo seu, Marissol (nome fictício/nickname). “Professora, a internet está ruim, mas vou tentar”, iniciou falando a aluna em sua apresentação. Muito ruído, falhas na leitura, implicações na conectividade seu discurso não podia ser entendido. Desligue a câmara, Marissol, talvez melhore a conexão. Tudo em vão! Saia da sala e entre novamente, Marissol. Tudo em vão!

Sabiamente relutou a aluna, “professora vou na casa do vizinho, talvez a internet lá esteja melhor, vou correndo ligeirinho, espere aí”! Para não me alongar, Marissol leu seu texto pendurada em cima de uma cadeira, com o celular em cima do guarda-roupa para captar melhor o sinal, utilizando a internet e a casa do vizinho para tal fim. São muitas histórias, muitos dilemas, muitas nuances: coabitar os tempos e os espaços das plataformas digitais, abre brechas para tantas discussões - a escola no ciberespaço ou o ciberespaço na escola?

O WhatsApp e o Google Meet, atuaram como agente de proximidade para continuidade de atividades escolares, atividades diárias, relações interpessoais, etc., dada às contingências cotidianas. Contudo, não podemos ignorar como o velho ditado nos diz: “caiu na rede é peixe!”, ampliando essa discussão sobre a participação aparentemente espontânea dos praticantes culturais na ágora da Internet e os elevados padrões de algorítmicos a serviço das intencionalidades humanas tanto para o bem, quanto para o mal, e que transformam nossa casa em lugares mapeados dentro do espaço das globalizações e das relações de poder.

A premissa deste texto, parte de um ideário de Paulo freire, e se eu não citá-lo, plagiando eu estaria, pois eis o fragmento que me inspirou a tal enredamento:

“Ninguém começa a ser professor numa certa terça-feira às 4 horas da tarde... Ninguém nasce professor ou marcado para ser professor. A gente se forma como educador permanentemente na prática e na reflexão sobre a prática”.

Gratidão a tod@s alunos e alunas que me fizeram professora desde 2002.