TRÊS PASTÉIS, UM CALDO E UM COELHO (Por Rachel Souza e Gustavo do Carmo)

A cana pronta pra ser moída, um cheiro de óleo de fritar pastel. Gumercindo sentiu o cheiro do outro lado da rua e de pronto pôs-se a verificar os bolsos a fim de achar algum trocado que pudesse saciar seu capricho gastronômico enquanto caminhava de encontro ao aroma que o arrebatava.

Em um dos bolsos acha uma nota de um real, um dente de alho que sua avó dizia dar boa sorte e afastar mal olhado, uma aposta do jogo do bicho e a chave do Monza. No outro, um lenço e um celular velho, daqueles tijolões dos anos 90. Quebrado. Mas que ainda tocava.

Sua campanhia mais parecia um alarme de incêndio que qualquer outra coisa. Ela toca. Do outro lado da linha uma voz grita:

- Ô, Gumercindo! Cumé qui é, homi! Já acabou de fazer as compras?

-Pô Jacimar, saí de Casa com 20 reais no bolso, metade joguei no coelho e mandei cercar, a outra metade vejo se dá pra comprar o q você pediu e de repente sobra algum pro caldo de cana.

- Você tinha que jogar no bicho, né, seu vagabundo? A gente passando necessidade e você jogando dinheiro fora! -Num é dinheiro fora, é investimento! É investimento quando ganha. Quando perde é dinheiro jogado fora, sim!

- Vi na televisão uns caras da bolsa falando que a melhor época pra investir é a de crise.

Eles usam gravata, sabem das coisas.

- Num importa! O que importa é que você não vai conseguir comprar o que eu pedi com apenas dez real. E vc sabe que os homi do bicho são mafiosos e dificilmente tu vai acertar.

Então tá jogando dinheiro fora, sim!

-Puta que o pariu!! Que mulé mais pessimista Você hein!!

- Não sou pessimista! Sou realista! Isso é influência da sua família. Ô povo ruim da porra! Vivem botando minhoca na sua cabeça, te jogam contra mim na maior.

Ele desligou na cara da mulher. Todos o observavam. Gumercindo não sabe se pela discussão ou pelo toque da campainha. Ficou com raiva, não gostava de perder.

Guardou o pesado aparelho no bolso e blasfemou em voz baixa: - Mulé enjoada! Quer saber de uma coisa? Vou comprar o pastel e o caldo de cana. Danem-se as compras.

-Aí guerreiro, me vê dois de carne e um de banana.

- Prá levá ou prá comê agora?

- Agora!

- Vai comer os três agora aqui? Tem certeza? Insiste o feirante, um nordestino franzino.

-Porra maluco, tá tirando onda com a minha cara?Faço o que quiser, vou querer os três e acabou,tô pagando.

-Tá bom, tá bom! Vai querer caldo de cana? Tá fresquinho.

-ihhh tô sentindo que tu tá me sacaneando... Como é q vou comer três massarocas a seco??

O feirante nordestino serve um caldo de cana bem gelado para o estressado freguês, faz tudo sem dizer uma única palavra. Gumercindo bebe em três goles e pede mais cinco pastéis de carne. Ele decide:

- Guerreiro. Pode embrulhar tudo pra viagem.

- nenhum de queijo? É coalho, trouxe ontem de viagem.

-Tá bem. Me dá dois então.

Ao que os pedidos se cumprem, Gumercindo pergunta o valor das iguarias e abre sua pochete pra pagar o pasteleiro.

- Doze real.

No bolso de trás da calça, Gumercindo pegou os dez reais que sobraram e entregou ao feirante.

- Toma dez.

-mas, mas... tá faltando 2. Diz o feirante amedrontado.

- Peraí, porra! Gumercindo revira os bolsos laterais, pega aquela nota de um real e entrega. - Toma! Só tenho um real. Dá pra fazer um desconto?

Amedrontado o feirante responde:

- Posso te dar um desconto se o senhor me devolver os pastéis de queijo. Trouxe o queijo da minha terra, foi caro!

- Caralho! Aí não é desconto! Aí tu tá mandando eu devolver o que não posso pagar, seu corno! Esbraveja furiosamente Gumercindo, pegando o nordestino pelo colarinho do jaleco.

A tina de óleo quente vira no chão, pastéis e bolinhos de aipim vitimados pela fúria do valentão, ficam ali, caídos, sem esperança de consumo...

-Calma, calma moço!

- Se não pode pagar, também não pode comer!São as leis de mercado! Interfere uma senhora ao assistir o desentendimento.

-Vá se foder as leis de mercado e a senhora também!!!

- O senhor é muito grosso!

-A Senhora não viu nada... Mas tá louca pra ver que eu sei!

Horrorizada, a dona desabafa:

- Atrevido! Abusado! Quem te deu o direito de falar assim comigo?

A cena era constrangedora, o Feirante perdia o ar enquanto Gumercindo apertava-lhe o pescoço. A Senhora estava vermelha, num misto de raiva e vergonha. Ninguém mexeu uma palha pra ajudar. Gumercindo apertava cada vez mais forte, como se o sufocamento alheio fosse lhe dar calma pra enfrentar a guerra que o esperava em casa. A senhora gritava:

- Bate em mim, meu filho! Bate em mim que eu gosto!

E Gumercindo atendeu o pedido, dando dois socos em cada olho da senhora de oitenta anos, que já roxeava de tanto apanhar. Um guarda apareceu para botar ordem na situação.

- Que é que tá acontecendo aqui?

- Nada não, seu guarda! Estamos apenas conversando - responde a senhora toda inchada, roxa e com os dentes quebrados.

O guarda olha abismado para os três e resolve intervir mais incisivamente na situação, detém Gumercindo com uns três golpes de seu cassetete.

- Tá pensando que eu sou maluco? Vamo todo mundo pra delegacia.

–Bate em mim, seu guarda, bate!! Também sou arruaceira! Clama a senhora.

O circo está armado, Os três são levados e ao chegar. O delegado libera todos sem cobrar fiança. Duas horas depois, Gumercindo chega em casa. Sem compras, sem dinheiro e com os pastéis amassados e frios, dentro de um papel branco,transparente de tão engordurado. Jacimar sente o ódio tomando-lhe o corpo, vai até o armário, escolhe o cinto mais grosso que tem, respira fundo, volta à sala e manda Gumercindo tirar as calças e deitar de bruços. Chorando, com um ar de derrotado, ele obedece. O cinto risca o ar de um lado a outro com força e ele quieto, sem saber que deu coelho na cabeça.

Gustavo do Carmo
Enviado por Gustavo do Carmo em 24/01/2007
Código do texto: T356798
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