A confissão de Lúcio

A confissão de Lúcio.

ginaldo_silva@hotmail.com

Pouco a pouco, Mário de Sá Carneiro vai se desnudando ao leitor através da obra A confissão de Lúcio. Escritor instável, inadaptado ao mundo, apaixonado e extremamente tímido, foi incapaz de assumir-se como adulto, interiorizando praticamente tudo, principalmente suas sensações, que se voltavam cada vez mais para o aberrante e para o mórbido.

Esta novela, escrita em primeira pessoa e publicada em 1914, consiste em uma excelente investigação do mudo sensorial. À maneira dos simbolistas, Mário de Sá Carneiro vai captando a mais íntima esfera do sensível, como se houvesse, para dirigi-lo, uma experiência vivida por ele, mas uma experiência supra-real que o conduz à sublimação. Dessa maneira, a narrativa é sedimentada em sensações, captando o som, a cor, o perfume, os efeitos de um mundo sentido, extra-lógico, tanto nas atitudes de seus personagens como no relato das ações passando para o leitor um clima fantástico, só passível de revelação através da leitura intuitiva.

A Confissão de Lúcio traz os sonhos fantasiosos, quase adolescentes, de um provinciano a contemplar uma Paris mitificada, a penetrar em sua roda boêmia, a participar de seu ambiente requintado e artístico, a descobrir-se na “cidade luz”. Com cenários elegantes e eróticos, e uma variedade de artistas que se julgam superiores, geniais e principalmente incompreendidos, fecha-se um círculo dentro do qual se passam os mais estranhos exercícios de entendimento, transmitidos ao leitor por um narrador que procura expiar suas culpas ao mesmo tempo em que procura entender os acontecimentos após dez anos de prisão e solidão. Aqui, o poeta deixa claro sua intenção:

Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei

e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para

os sonhos: nada podendo já esperar e coisa alguma desejando –

eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a

minha inocência...

A Confissão de Lúcio está entre as obras-primas da novelística portuguesa. Para tanto, o autor chega ao requinte absoluto no trabalho com o significado da Arte. Os efeitos de surpresa e suspense são verdadeiramente atingidos e, acrescentados às três obsessões de Mário de Sá Carneiro: o suicídio, o amor pervertido e anormalidade avançada à loucura, o que formam um composto de perfeita dimensão artística associada a um enredo intrigante e sui generis.

O narrador-protagonista cumpre um destino absurdo: Lúcio deixa-se prender e condenar por um crime que não cometeu e que também não sabe perfeitamente se existiu ou não. Para melhor compreensão da obra, é possível dividi-la em três partes, que poderíamos denominar: o encontro, a bipartição, a ruptura.

A primeira, ambientada em Paris de 1895, encontra Lúcio às voltas com o clima artístico geral, quando conhece o escultor Gervásio Vila-Nova, e passa a freqüentar uma roda boêmia dispersa, fútil e vazia. Mas essa roda serve de ponte para o encontro com o conhecido poeta Ricardo de Loureiro. Trava-se uma amizade que penetra nos recônditos da alma, uma amizade vazada entre as projeções de um “eu” totalmente deslocado e os desdobramentos deste eu – homem – em busca de um elo que o reintegre no mundo, mesmo sendo este elo um ato anormal, não consciente, não identificado plenamente, mas que viria a se concretizar no amor por outro homem.

O beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual,

tivera a mesma cor, a mesma perturbação que

os beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma

maneira...

Em uma segunda parte da narrativa, o elemento catalisador – Ricardo de Loureiro – domina as atitudes do narrador, embora sob disfarce. Após um ano de ausência, Ricardo de Loureiro volta casado a Paris. Uma mulher se impõe entre Lúcio e o poeta. Uma estranha mulher, misteriosa, que não tem passado, não tem existência real, não deixa marcas a não ser as de um vago perfume. Lúcio torna-se amante de Marta. Um estranho triângulo amoroso é formado: um homem apaixonado por sua projeção, ou melhor, um homem alucinado pela face feminina escolhida para a projeção.

Na terceira parte, como elemento desagregador, surge o ciúme. Marta, fugidia – envolve-se com outro – escapa, provoca e tortura Lúcio. Após um período de isolamento, Lúcio reencontra Ricardo. Em confissão, Ricardo revela que se projetara em Marta e, no auge da alucinação, mata a mulher. Lúcio neste momento vislumbra o mistério que envolvera suas relações amorosas e, ao mesmo tempo convida o leitor a penetrar nos labirintos de sua mente, para enfim decifrar o grande enigma que envolve esse estranho caso de amor.

Lúcio, Marta, Ricardo revelam-se personalidades multifacetadas que não conseguem extravasar-se e, por isso, refugiam-se na morte como forma de escapar dos mistérios da vida e das paixões.

Embora os homens se sintam incapacitados de penetrar no mistério da morte, deve-se levar em conta que existem muito mais mistérios na vida, inclusive o mistério da morte. Há somente uma coisa correta a ser feita: calar-se e deixar-se levar pelas sensações. Ao leitor, cabe buscar – se é que existe – a lógica da vida.

ginaldo
Enviado por ginaldo em 25/06/2008
Código do texto: T1051402
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