EUTANÁSIA – CRIME OU APENAS UMA ESCOLHA?

 

“Aquilo que tenho mais medo é que me obriguem a viver quando meu corpo só deseja morrer”. (Rubem Alves do livro: O retorno e terno. Ed. Papirus.)

 

            Eutanásia (do grego ευθανασία - ευ "bom", θάνατος "morte") é a prática pela qual se abrevia a vida de um enfermo incurável, de maneira controlada e assistida por um especialista. A eutanásia representa atualmente uma complicada questão de bioética e biodireito, pois enquanto o estado tem como princípio a proteção da vida dos seus cidadãos, existem aqueles que defendem o direito de dar fim ao seu sofrimento, antecipando a morte.

            A eutanásia pode ser classificada de várias formas, de acordo com o critério considerado. Quanto ao tipo de ação ela pode ser:

ð  Ativa: o ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento do paciente, por fins misericordiosos;

ð  Passiva ou Indireta: a morte do paciente ocorre, dentro de uma situação de terminalidade, ou porque não se inicia uma ação médica, ou pela interrupção de uma medida extraordinária, com o objetivo de minorar o sofrimento e, de

ð  Duplo Efeito: quando a morte é acelerada como uma conseqüência indireta das ações médicas que são executadas visando o alívio do sofrimento de um paciente terminal.

Quanto ao consentimento do paciente, pode ser:

ð  Voluntária: quando a morte é provocada atendendo a uma vontade do paciente;

ð  Involuntária: quando a morte é provocada contra a vontade do paciente e

ð  Não Voluntária: quando a morte é provocada sem que o paciente tivesse manifestado sua posição em relação a ela.

A classificação, quanto ao consentimento, visa estabelecer, em última análise, a responsabilidade do agente, no caso, o médico. O ato de promover a morte por motivo de compaixão, diante de um sofrimento penoso e insuportável, sempre foi motivo de reflexão por parte da sociedade. Agora, essa discussão tornou-se ainda mais presente quando se discute os direitos individuais como resultados de uma ampla mobilização do pensamento dos setores organizados da sociedade, e quando a cidadania exige mais direitos, intensificada este ano pela CF (Campanha da Fraternidade) 2008.

            Além disso, surgem cada vez mais tratamentos e recursos capazes de prolongar por mais tempo, a vida dos pacientes, o que pode levar a um demorado e penoso processo de morrer. A medicina atual, na medida em que avança na possibilidade de salvar mais vidas, cria inevitavelmente complexos dilemas éticos, que permitem maiores dificuldades para um conceito mais ajustado, do fim da existência humana. Além disso, o aumento da eficácia e a segurança das novas modalidades terapêuticas motivam também questionamentos quanto aos aspectos econômicos, éticos e legais, resultantes do emprego exagerado de tais medidas e das possíveis indicações inadequadas de sua aplicação.

 O cenário da morte e a situação de paciente terminal são as condições que ensejam maiores conflitos neste contexto, levando em conta os princípios, às vezes antagônicos, da preservação da vida e do alívio do sofrimento. Desse modo, disfarçada, enfraquecida e desumanizada pelos rigores da moderna tecnologia médica, a morte vai mudando sua face ao longo do tempo. A cada dia que passa maior é a cobrança de que é possível uma morte digna e as famílias já admitem o direito de decidir sobre o destino de seus enfermos terminais, torturados pelo sofrimento físico, para os quais os meios terapêuticos disponíveis não conseguem atenuar.  

Para além do avanço da ciência, é preciso olhar mais atentamente a realidade sociológica e nossa convivência cultural, procurando entender a complexidade e a profundeza do tema. Não podemos esquecer que a realidade se apresenta com uma enorme complexidade, o que dificulta a valorização da oportunidade da decisão a tomar. Afirmações como 'incurável', 'proximidade de morte', 'perspectiva de cura', 'prolongamento da vida', etc., são posições muito relativas e de uma referência em muitas ocasiões, pouco confiáveis. Daí a delicadeza e a escrupulosidade necessárias na hora de enfrentar-se com o caso concreto.

O "direito de matar" ou o "direito de morrer" sempre teve, em todas as épocas, seus mais extremados defensores. Na Índia de antigamente, os incuráveis eram jogados no Gangas, depois de se lhes vedar a boca e as narinas com a lama sagrada. Os espartanos, conta Plutarco em Vidas Paralelas, do alto do monte Taijeto, lançavam os recém-nascidos deformados e até anciãos, pois "só viam em seus filhos futuros guerreiros que, para cumprirem tais condições deveriam apresentar as máximas condições de robustez e força". Os Brâmanes eliminavam os velhos enfermos e os recém-nascidos defeituosos por considerá-los imprestáveis aos interesses do grupo.

Em Atenas, o Senado tinha o poder absoluto de decidir sobre a eliminação dos velhos e incuráveis, dando-lhes o conium maculatum - bebida venenosa, em cerimônias especiais. Na Idade Média, oferecia-se aos guerreiros feridos um punhal muito afiado, conhecido por misericórdia, que lhes servia para evitar o sofrimento e a desonra. O polegar para baixo dos césares era uma indulgente autorização à morte, permitindo aos gladiadores feridos evitarem a agonia e o ultraje. Há até quem afirme que o gesto dos guardas judeus de darem a Jesus uma esponja embebida em vinagre, antes de constituir ato de zombaria e crueldade, teria sido uma maneira piedosa de amenizar seu sofrimento, pois o que lhes ofereceram, segundo consta, fora simplesmente o vinho da morte, numa atitude de extrema compaixão.

Segundo Dioscorides (Autor greco-romano, considerado o fundador da Farmacognosia), esta substância "produzia um sono profundo e prolongado, durante o qual o crucificado não sentia nem os mais cruentos castigos, e por fim caía em letargo passando à morte insensivelmente”. Assim admitida na antiguidade, à eutanásia só foi condenada a partir do judaísmo e do cristianismo, em cujos princípios a vida tem o caráter sagrado.

No entanto, foi a partir do sentimento que cerca o direito moderno que a eutanásia assumiu caráter criminoso, como proteção irrecusável do mais valioso dos bens: a vida. Até mesmo nos instantes mais densos, como nos conflitos internacionais, quando tudo parece perdido, face às condições mais precárias e excepcionais, ainda assim, o bem da vida é de tal magnitude que a consciência humana procura protegê-la contra a insânia, criando regras para impedir a prática de crueldades irreparáveis.

Em meio a tudo isso está o “paciente”, aquele a quem pertence à vida. Deve-se ou não respeitar sua vontade? Há vida onde não há alegria? Vontade de lutar? Brilho no olhar? Rubem Alves, no livro “Na Morada das Palavras” diz: "A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria, ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia. (...) A morte é onde mora a saudade".  

Não podemos decidir sobre a legalidade ou não da eutanásia sem termos claramente o nosso conceito de vida. Estar vivo é simplesmente respirar? Ter um cérebro que ainda funciona? Viver é existir de todas as formas. Para viver não basta ver, ouvir, pensar e falar, pois estas são manifestações da existência. Para viver é preciso sentir, mergulhar em si mesmo e sair. É olhar e ver. Quem apenas existe, sem viver, já está morto.

Há mais morte em vida do que gostaríamos de admitir. Há morte na fome, no analfabetismo, na falta de moradia, no preconceito, na violência velada, etc.,  mas não há lei que incrimine quem comete estes delitos mortais. A própria Igreja Católica prega que devemos ter vida e vida em abundância, não seria contraditório manter alguém vivo sem condições dignas de sobrevivência?  Volto a citar Rubem Alves: 

"Não, não quero recursos heróicos. Só quero que a dor não me contorça para poder ouvir um último poema, para ouvir uma última sonata. Somente assim o adeus ficará coisa doce, (...) e o vazio que se segue se encherá da doce nostalgia que tem o nome de saudade... É preciso reaprender a sabedoria sagrada: se há um tempo de nascer, há também um tempo de morrer. Que o último momento seja belo como o pôr-do-sol, longe do frio elétrico-metálico das máquinas..." Do livro: O retorno e terno ed. Papirus.


Da Série: Artigos Sobre o Tema da CF 2008, Escritos para o Caderno Expressão da Gazeta do Oeste.

Imagem pesquisada no fotosearch.






 

Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 19/07/2008
Reeditado em 11/11/2010
Código do texto: T1087931
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