O Ser e o Nada na Divina Comédia de Dante

Para este trabalho, tomamos como texto principal a clássica obra A Divina Comédia de Dante Alighieri. A leitura que nos interessará analisar para apresentar uma interpretação será a do Canto XI do Paraíso, uma vez que sabemos que a obra apresenta riqueza de abordagens, tanto no seu sentido de poesia quanto no de conteúdo. Em sua totalidade, é comumente considerada como uma síntese de todo o pensamento ou cosmovisão de uma época, referente ao final do século XIII e início do XIV.

Como instrumento de auxílio nesta leitura do trecho indicado, utilizaremos a proposta apresentada por Erich Auerbach, em seu ensaio Figura (São Paulo: Ática, 1997), no qual ele nos remete a um modelo interpretativo denominado de interpretação figural. Segundo o citado autor (1997:46) a idéia central de tal modelo reside no estabelecimento de conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenas a si mesmo, mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange e preenche o primeiro. A importância deste modo de leitura é que ele se compromete com o caráter histórico dos acontecimentos, trazendo-os a uma realidade concreta e não permitindo etéreas divagações idealistas. Ou seja, permite crítica não hegeliana da lição de Hegel para quem todo estudo é uma análise do conceito no tempo, pois recusa categorias hipersubjetivas de análise e coloca os autores, o Poeta no caso, sempre num plano histórico, em que a obra aparece como uma coisa mesma para a qual se volta e da qual se retira algo vivencial para o leitor.

O Canto XI do Paraíso narra o encontro entre o Poeta e Santo Tomás de Aquino, que identificado no Canto anterior, passa a relatar a biografia em modo muito específico da vida de São Francisco, entre os versos 43 a 117, concluindo ao final com resposta à pergunta também anterior do Poeta: por se nutrir no bem, se for cuidadosa.

Divulga-se largamente que a Comédia narra não apenas a visão medieva do pós-morte, mas o percurso necessário ao homem para o encontro com o Bem, vale dizer, o percurso do homem para a sabedoria. Este aspecto não mais é questionado, sendo pacífico na interpretação e daqui nasce o ponto que nos interessa no Canto XI. Se a obra relata o percurso para o Bem, como pode ser ele realizado praticamente mesmo por aqueles que não possuem Virgílio e Beatriz por guia?

De acordo com a lição de Auerbach, vemos na obra que todos os personagens são apresentados a Dante de modo direto e a única oportunidade em que isto não ocorre está sediada no Canto XI, pois São Francisco tem sua vida contada de forma indireta por Santo Tomás. É o grande expoente da racionalidade teórica medieval, Tomás, que apresenta Francisco, por sua vez grande expoente da prática do amor católico daqueles tempos. Não é por outro motivo que Chesterton escreve a biografia dos dois Santos, justificando seu trabalho exatamente por este aspecto: Tomás representa o ápice da sabedoria cristã e Francisco, o do amor cristão.

Para responder à angustia de Dante, Santo Tomás relata a vida de Francisco, que nos versos 52/54 é apresentado como nascido do raio de sol (não diga Assis... mas diga Oriente) e, depois de descrever com toda a beleza de forma e linguagem a ruptura com seu pai, nos é relatado o casamento de Francisco, com a viúva naquele momento de mais de mil anos, por todos desprezada e por ninguém mais até ali amada. Ela era antes a mulher de Cristo, que com ele subiu à cruz, enquanto mesmo Maria a seu pé permaneceu. Quem era essa mulher? E Tomás nos esclarece que se tratava da Pobreza.

Francisco unira-se a profundo relacionamento com a Pobreza, a quem somente Cristo desposara. Socorrendo-nos uma vez mais de Auerbach, a luta de Francisco não se traduzia simplesmente pela recusa aos bens familiares, mas por uma luta pelo alcance daquilo que mais desejava e amava. Era a penetrante e profunda busca da Pobreza em nome do amor. O movimento franciscano, ocorrido em sua biografia, foi o mesmo de Cristo em sua história: a união com a Pobreza. Neste ponto, concluímos com Auerbach que toda história do mundo depois de Cristo está, para Dante, contida na imagem do noivo, que vai ao encontro de sua bem-amada. A vida de Francisco, narrada indiretamente para destacar sua missão, apresenta-se como um modelo real, de alguém que historicamente imitou Cristo.

Este modelo não é simplesmente ideal ou moral, ele se concretizou no mundo, como objeto de uma procura esforçada, como uma investigação, como uma busca real. Há a superação de uma essência contemplativa, para o alcance prático de uma conduta, para a realização de uma práxis direta e imediatamente fundada na vida. É a existência que permite a imitação do modelo; não se supera a realidade, vive-se intensamente nela e dela. É no decorrer da vida que se concretiza a lição real de São Francisco.

Para Auerbach, o leitor medievo tinha consciência deste modo de leitura, denominado pelo citado autor de interpretação figural. É o leitor moderno que precisa do suporte da pesquisa para compreendê-lo.

Neste momento, procuramos ir pouco além do grande ensaísta alemão e cumprir a tarefa a que nos propusemos. Para o leitor moderno, nesta época da pós-modernidade, em que a racionalidade é o único pressuposto de qualquer práxis, de qualquer vínculo social ou moral, como poderia ser aproveitada a lição de Dante?

Como vimos, embora rica em sua metafísica, a concepção de Dante exige uma prática real, um exercício vivencial da vida de Francisco, como ele a viveu. Mas o que seria hoje casar-se com a Pobreza? Em que canto esta mais uma vez viúva poderia ser encontrada? Largar tudo, viver na miséria, seria a solução para uma sociedade pós-industrial, mediada por economia de mercado, cuja produção visa não mais a mercadoria, porém o conhecimento?

Dante certamente jamais chegou a pensar num modelo social moderno, mas os grandes autores têm o condão de, lembrando Ítalo Calvino, nunca terminar de dizer aquilo que tinham a dizer e que devem ser lidos para entendermos quem somos.

Por trás da alegoria do casamento com a Pobreza, o que há? Lembremo-nos quem foi seu primeiro marido: Cristo, historicamente a concretização divina. Vida na terra do princípio divino, sem qualquer especulação sobrenatural. Cristo desposa a Pobreza por amor e, desta união, decorre também amor.

Lembremo-nos de outro modo de se compreender o amor: a figura de Eros, que representa o amor na mitologia grega. Numa das principais versões, retratada, por exemplo, no Banquete de Platão, Eros nasce da união entre dois deuses, Poros e Pênia.

Poros é abundância, a plenitude de recursos, enquanto Pênia representa a penúria, a paupertas, a ausência de qualquer recurso. Num banquete, Poros, embriagado com vinho – lembrando a dionisíaca atitude de relação com a vida – acaba por se aproximar de Pênia e esta cria a oportunidade de ambos gerarem um filho, Eros, o amor, que para sempre fica caracterizado pela dialética entre a abundância e a pobreza.

Numa sociedade consumista como a nossa atual, fica fácil a analogia entre ter (abundância) e não ter (pobreza). No nosso modelo hodierno, fica também fácil dizer que ter é ser e não ter é não ser. O que significaria isto para Dante, uma vez que ele não vivia numa sociedade pós-moderna?

Se Cristo era a divindade em sua dimensão histórica, ele era a representação do todo na concretização do tempo, enquanto a Pobreza aparecia como a figura desprezada que nunca tivera nada e nunca fora nada. A união do todo com o nada configura não só um modo de expressão entre várias mitologias, como também o princípio explicativo de formação do universo em várias regiões. A idéia de nada representa o oposto do ser, que é o não-ser.

Mas Cristo era o divino na terra e Francisco, mais terreno ainda, era um homem, um ser vivente humano. O que Dante descreve é a união concreta entre um homem e o nada (não-ser), uma realidade prática, um acontecimento concreto, efetivamente real.

O homem é um ser, como dito, ser vivente humano. Logo, Francisco representava a existência de um ser que se dedica e se entrega ao não-ser e sua vivência passa como traduzida por esta relação. Francisco é ser, enquanto a Pobreza é não-ser. Desta união amorosa nascida pela entrega amorosa, renasce o amor que ilumina sua trilha exemplar.

Eis a lição de Dante, figurada na suavidade do poema, indiretamente narrado pelo maior representante da racionalidade católica, sobre a vida do maior representante da caridade católica, lembrando Chesterton. A lição de Dante que até hoje pode ser aproveitada não se limita a ter ou não ter, mas indica o percurso para o amor, que se encontra na relação sempre desejada e constante do ser e não-ser. O amor, historicamente realizado na experiência narrativa da vida de Francisco, pode ser hoje vivenciado do mesmo modo. Um homem em si, Francisco, Alberto ou Pedro, é um ser, um todo em si mesmo, uma totalidade. O não-ser é sempre outro, homem, mulher ou comunidade, pois em relação ao primeiro, não é uma totalidade; é um não-ser, pois se apresenta como um infinito campo de possibilidades.

Dante – não nos esqueçamos, sempre alguém preocupado com a vida política – nos transmite a noção de que para uma verdadeira relação na polís há que haver a concreta relação dialética entre o ser (que cada um é) e o não-ser (que a comunidade em que estamos representa). Da relação histórica, não ideal, entre ser e não-ser que nasce a verdadeira política ou o verdadeiro amor.