O ELEMENTO ÁGUA EM THIAGO DE MELO E SÉRGIO NAPP

ELEMENTO ÁGUA EM THIAGO DE MELO E SÉRGIO NAPP

Em 27 de junho de 1884, na França, nasceu o filósofo Gaston Bachelard. Estudioso das questões humanas e grande observador e pensador, publicou vários livros, como: Ensaio sobre o conhecimento aproximado; O racionalismo aplicado; A terra e os devaneios do repouso; A terra e os devaneios da Vontade; O ar e os sonhos; O materialismo racional; A poética do espaço.

Em algumas dessas obras, como sugerem seus nomes, Bachelard preocupou-se com o estudo dos quatro elementos do universo, água, terra, fogo e ar como co-partícipes fundamentais na vida dos seres vivos e, em especial, do ser humano. Esses elementos aparecem constantemente na literatura, na poesia, representando, ora características positivas, ora negativas. Os quatro elementos fazem parte do imaginário do homem, de seus sonhos e suas fantasias.

A partir da leitura e compreensão de seus textos sobre os quatro elementos, faremos a análise de alguns poemas de Thiago de Mello e Sérgio Napp, onde encontraremos a presença do elemento água, especificamente, objeto desse ensaio. Os textos que serão trabalhados são: As águas e Como um rio, ambos de Thiago de Mello; e Passageiros, de Sérgio Napp.

O poema, denominado As águas, nos remete para uma idéia ampla, tendendo ao infinito, pois não limita nada, não circunscreve alguma água em especial. Libera a imagem para todas as águas, todo um universo aqüífero.

O poema em todas as suas estrofes se refere à vida enquanto processo de criação, remetendo para o Gênesis: “A terra estava sem forma e vazia, os trevos cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas“... e no poema:... “As águas já nasceram navegadas. / Imóveis foram, antes. Como estátuas. / Todas eram vazias de mistérios” (1ª estrofe, versos 1, 2, 3). No Gênesis: “No princípio Deus criou o céu e a terra“. No poema: “Foi no começo. O espírito vogava / por sobre o rosto tímido das águas, / que estremeciam só de eternidade”. “... As águas já nasceram navegadas / pela cara de Deus, barco primeiro”/ ( 2ª estrofe - versos 1, 2, 3, 8). Na Quarta estrofe, metaforicamente, temos que os homens repartiram o mundo, pouco ou nada obtendo, devorando-se em pelejas inutilmente. Assim, consegue dar uma idéia da disputa entre os homens, entre nações, a estupidez da luta entre irmãos movidas apenas pela ambição. As águas são irmãs despedaçadas pelo sal. (Versos 5, 6-4ª estrofe).

O distanciamento entre homem e criador fica bem nítido na 5ª estrofe: “Do espírito saudosas foram poucas / as que ficaram - flores entreabertas .../ Arrependidas águas ainda choram/ um prato que se eleva à mão da lua.

A 6ª estrofe representa a vida cotidiana, águas ora correntosas, ora dóceis escondem cemitérios onde, em alguns momentos, sonhos se fabricam. No entanto não celebra o bom da fonte da vida. A imagem é nua, dura, fala do mundo real, pois até os sonhos são feitos em outros.

Na sétima, mesclando as águas profundas, dormentes, com as águas violentas descritas por Bachelard, encontramos o devaneio de Edgar Poe e o complexo de Swinburne, o primeiro relativo às águas profundas, águas dormentes, águas mortas, pesadas e o segundo pela presença de águas violentas.

Na oitava e última estrofe, a chuva entra como elemento renovador, purificador, as águas são caminhos, que levam as âncoras sagradas que de Deus ficaram, firmes no último homem. Aqui temos um canto pela vida, para a vida, onde o poeta canta uma fé que se apresenta inquebrantável, imorredoura.

Teríamos ainda uma comparação com a vida humana que começa no meio líquido, a água maternal ou feminina. O poema se refere e remete ao Gênesis bíblico, mas é indissociável a idéia de uma ligação com a gestação humana

Analisando o poema “Passageiros” de Sérgio Napp, temos que o título já harmoniza com água universal a imagem das águas passageiras.

Na primeira estrofe, outra vez a criação agora pós-convulsão, pós-conflito remete para as águas violentas “Um dilúvio sobre o pampa /mansamente se desvenda / e o som nasce das águas / compele novas vivendas”. Após a luta, tudo mansamente se desvenda e o som (vida) nasce das águas, novamente leva a idéia do Gênesis e do útero materno, o som nasce das águas, o som da criança ao nascer, instantes após chegar ao mundo exterior.

As 2ª, 3ª e 4ª estrofes se referem à vida, às vicissitudes, não é um canto de celebração ao viver, a vida são águas pesadas, dormentes; “A cada ser migratório / se reservam desafetos / e se perdem no cimento / desse rio imaginário / afluente do Calvário/ Nesses vazantes tão áridos /essas vertentes tão sólidas (1 e 2 da 2ª -4, 5 e da 3ª-1ª e 2ª da 4ª). O rio da vida é afluente do Calvário que simboliza o sofrimento dos homens.

Na 5ª e última estrofe, temos o barco corrente, a água, substância da vida, é também substância de morte para o devaneio ambivalente. Caronte é gratidão de mistérios, conduz as almas dos mortos, representa o que a morte tem de lento e pesado e a morte tem causa, “as águas homicidas/ que vertem dos rios da fome”. Também a idéia da água lenta e pesada simboliza uma espécie de morte lenta, a inanição pela fome.

O terceiro texto, poema de Thiago de Melo, “Como um Rio”, já traz no título a idéia de comparação e na 1ª estrofe a comparação se desvenda: “Ser capaz, como um rio / que rema sozinho / a canoa que se cansa/ de servir de caminho / para a esperança” (1, 2, 3, 4 e 5 da 1ª ). O homem é como o rio e tem que levar a vida, mesmo com seus cansaços, tem de ser caminho, esperança, tem de ser límpido, levar e lavar, aqui se manifesta a água purificadora, o complexo da Fonte de Juventa. Segundo Paul Clandel, citado por Bachelard “Tudo o que o coração deseja pode sempre reduzir-se à figura da água” .

Todo o poema é ensinar a viver, sem sonhos, mas entendendo a vida, seus significados, seus mistérios, é um canto que celebra a aprendizagem de vida, remetendo significativamente para as idéias de purificação, moral e ainda a figura da supremacia da água doce, utilizando-se do rio como elemento comparativo: “Toda a água era doce para o egípcio, mas, sobretudo, aquela que era tirada do rio invenção de Osíris” diz Gerard de Nerval, citado por Bachelard. Esses significados são representados pelas comparações utilizadas no poema: “Crescer para entregar / na distância calada” (1 e 2 da 2ª estrofe) “Se tempo é de descer /reter o dom da força / sem deixar de seguir” ( 1, 2 e 3 da 3ª estrofe). “Como um rio aceitar / essas súbitas ondas / de águas impuras’ (1, 2 e 3 da 4ª estrofe) Como um rio que nasce / de outros, saber seguir / juntos com outros’ (1, 2 e 3 da 5ª estrofe). “Mudar em movimento, / mas sem deixar de ser / o mesmo ser que muda / como um rio.” ( 4 versos finais).

Através da análise destes fundamentos, na teoria de Bachelard, percebemos a importância do elemento água como símbolo para representar as necessidades e medos do ser humano, e as formas como os poetas fazem uso desses elementos no momento de expressarem sentimentos e emoções comuns a todos nós. A partir dos postulados e ensinamentos de Bachelard, encontramos um novo ângulo para analisar a poesia contida nos textos, entender o íntimo das palavras e seus múltiplos significados, compreender a fala do poeta pela palavra que esgrima.

Os poetas, pessoas que fazem do uso da palavra uma verdadeira revolução, ancoram-se, ora na vida real como observadores, ora viajam ao mundo dos sonhos para captar e transmitir os sentimentos, as inquietudes e os anseios que povoam o imaginário do ser humano.

Nos poemas, em análise, a vida foi tratada ora como nascer e renascer, ora puro sofrimento, ora uma constante aprendizagem. As figuras do rio, de Caronte e do mar foram utilizadas para falar da vida, do homem e do viver em toda a sua amplitude, sua força e plenitude e com todos os seus mistérios e múltiplos significados.

moises silveira de menezes
Enviado por moises silveira de menezes em 06/03/2006
Código do texto: T119489