Machado e a Durabilidade da Arte (*)

Quem já não quis ser o compositor de canções inesquecíveis, como Carinhoso e Let it Be? Ou fazer parte de um grupo de intelectuais envolto, por força do tempo e da distância, numa aura de lenda? Há quem sonhe com a ousada aventura empreendida pela confraria de Freud na Viena do início do século 20. Outros devaneiam em torno dos modernistas na Paulicéia Desvairada de 1922.

Em fantasia, podemos escolher a circunstância ditosa e criativa na qual veio à luz uma obra admirável para compartilhá-la, na qualidade de autor, ou pelo menos de alguém muito próximo a ele. Seja qual for o gênero ou o estilo, a obra de arte, no sentido amplo, desperta interesse não só pelas suas qualidades intrínsecas, isto é, relativas à sua constituição. Deixamo-nos embriagar igualmente pela atmosfera que há em torno de sua criação, formada pela mescla de fatos e mistérios cercando autores e testemunhas in loco.

Graças à pletora de informações e delírios sobre os 50 anos da Bossa Nova, muitos brasileiros têm reincidido naquela nostalgia da suave e moderna boemia do Bar Veloso, onde Tom Jobim e Vinícius de Moraes se inspiraram para compor Garota de Ipanema - segundo nos contam até as pedras do calçadão.

A obra de Machado de Assis, considerado por muitos como o maior escritor brasileiro, pelo menos do século 19, também exerce fascínio sobre leitores de hoje. Ainda assim, quantos estariam dispostos a viajar para 150 anos atrás e repetir seus passos, mesmo que o prêmio fosse a paternidade de uma literatura de quilate comparável ao de poucas no Brasil e no mundo? É o renomado crítico norte-americano Harold Bloom quem escalou Machado para uma galeria de gênios da literatura mundial.

Diria que talvez poucos hoje em dia buscassem a figura de um funcionário público exemplar, nada propenso a farras e viagens, monogâmico, epilético e, além do mais, conhecido pelo apelido de Bruxo do Cosme Velho, para uma espécie de fusão idólatra. Até porque à imagem de Machado não se incorporaram, para a maioria, as esporádicas molecagens do jovem e simpático escritor e a sua paixão por sopranos e atrizes nos tempos em que era um conceituado crítico de música erudita e teatro. O grande público usualmente pensa em Machado como o velho adoentado, obrigado a licenças do Ministério da Agricultura para tratar das vistas. E que escreveu livros em linguagem arcaica obrigatórios para trabalhos escolares. O que um público ainda difuso vem descobrindo é que Machado, a despeito da ortografia antiga e de algumas construções de época, pode ser muito divertido. Principalmente por causa de sua ironia, mesmo quando nos leva para o terreno do trágico.

A imagem que tem perdurado, no entanto, é a daquela foto muito difundida, na qual ele irrompe do alçapão das idades já grisalho, barbudo e de pincenê. Nesse aspecto, os livros publicados pelo escritor levam vantagem sobre diversos trabalhos em literatura e outros domínios artísticos: nos fascinam pelo que são, efetivamente, e pelo que nos revelam da biografia de Machado. Mas, confrontados com o modesto glamour que enxergamos na vida de quem os trouxe à luz, não nos estimulam a pensar na possibilidade remota de que nós mesmos pudéssemos escrevê-los.

Seja qual for o interesse de um biógrafo - a exaltação ou o apedrejamento -, a biografia é sempre o prestativo e indiscreto oráculo ao qual recorremos para entender por que outros chegaram onde não conseguimos sequer avistar. A biografia acicata e depois apazigua a nossa inveja, ao mostrar o quão íngreme foi quase sempre o caminho para os que produziram algo digno de nota.

Por isso, quando meditamos na importância da obra do bruxo, é natural que se insinue a pergunta sobre como foi possível, ao garoto pobre e mestiço, acumular um patrimônio intelectual inestimável, disponibilizado em romances, contos, poemas, peças de teatro, traduções, críticas e até artigos jornalísticos. Longe de qualquer diagnóstico apressado, podemos detectar em Machado, de forma característica, aquela tão humana dualidade dor-prazer. De um lado, o escritor parecia sempre ferido pela espora da inquietação. Mas sua poligrafia, assinalada como um traço marcante pelo senador e acadêmico Marco Maciel (DEM-PE), também foi o resultado de um grande e requintado apetite, tal qual exibem os franceses em seus prolongados jantares - logo ele, Machado que já teve seu estilo comparado a uma linhagem de autores britânicos.

Parece claro que, à centelha criativa, somou-se a necessidade de empreender e um gosto pelo trabalho árduo e meticuloso, que o fazia sofrer a cada edição com os inevitáveis erros tipográficos. O ambiente em volta, extremamente hostil ao perfil do nosso escritor, foi vencido por meio do esforço diligente e de uma postura discreta. Se é que se pode dizer isso de alguém que cresceu profissionalmente publicando textos.

O que se depreende dos dados biográficos de Machado é que ele foi galgando degrau por degrau, começando pelo posto de auxiliar de tipografia, ainda adolescente. E contou com a ajuda de padrinhos. Mas esses apadrinhamentos - de resto, um costume da nossa sociedade cordial - poderiam ter rendido apenas um homem de classe média, cultura mediana e abrigado medrosamente numa repartição pública.

Fala-se na habilidade diplomática do escritor. Seria também um reflexo do "homem cordial" que nos moldou? Aqui é preciso abrir um parêntese para esclarecer o conceito de cordialidade difundido por Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil. Trata-se não apenas da afabilidade que tudo acomoda, como se convencionou dizer erroneamente desde os anos 30. Esse "cordial" diz respeito à vontade do coração (no latim medieval, cordiális, relativo ao coração). É o interesse pessoal e da amizade sobrepondo-se a um acordo racional, social e politicamente elaborado para servir de norma válida para todos. Embora o próprio Sérgio Buarque tenha tentado reparar esse equívoco em seu livro, a confusão continua atrapalhando o debate nacional sobre o assunto.

Ao fazer passar de maneira hábil sua visão do país, sua crítica social e política, sem causar grandes choques ou ferir suscetibilidades, Machado obteve não só espaço, mas reconhecimento e simpatia. No trato pessoal, consta que era mestre em não provocar melindres com opiniões fortes acerca de temas e pessoas.

Nos escritos, procurou sempre a ironia fina ou os pretextos inocentes para tocar em temas delicados. Um deles, o dos problemas raciais, foi sutilmente abordado em dois dos seus romances mais importantes - Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro - demonstrando que ele não esteve alheio a assuntos espinhosos, como chegaram a acusá-lo alguns. Ao contrário, era, como se diz hoje em dia, "antenadíssimo", mas agiu com a discrição que justifica o parecer sobre seus modos um tanto fleumáticos.

Vale a pena reler a passagem de Dom Casmurro abaixo:

"(...) Olhe, aquele preto que ali vai passando, é de lá. Tomás!

- Nhonhô!

Estávamos na horta de minha casa, e o preto andava em serviço; chegou-se a nós e esperou.

- É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está?

- Está socando milho, sim, senhor.

- Você ainda se lembra da roça, Tomás?

- Alembra, sim, senhor.

- Bem, vá-se embora.

Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele José, aquele outro Damião...

- Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.

Com efeito, eram diferentes letras, e só então reparei nisto; apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria Gorda, ou de nação como Pedro Benguela, Antônio Moçambique...

- E estão todos aqui em casa? perguntou ele.

- Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados. Não era possível ter todos em casa. Nem são todos os da roça; a maior parte ficou lá.(...)"

E esta, de Brás Cubas:

"(..) vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, - ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita. (...)"

Assim foi em relação a outros tópicos, como o sexo, já bastante repisados: A sempre discutida traição de Capitu a Bentinho, que nunca é referida claramente em Dom Casmurro, mas que parece inegável, destaca-se ao lado da possibilidade de uma aventura ilícita para os padrões da época no conto A Missa do Galo. E não há como fechar os olhos ao conteúdo de profunda crítica social contido na alegoria aparentemente despretensiosa de O Alienista.

A literatura de Machado tem sido objeto de farta análise e sua vida vem sendo esquadrinhada até onde há registros. A despeito disso, muitos ainda dizem que ele jamais saiu do Rio de Janeiro, a não ser para cercanias como Friburgo. Uma injustiça, evidentemente. Cronologia publicada pela Academia Brasileira de Letras (ABL) afirma que, com certeza, Machado foi uma vez a Minas Gerais. E há indícios de que teria visitado aquela então província em outras ocasiões.

Ou seja, exceto pelos espetáculos teatrais ou pelas óperas, a vida de Machado era feita de uma rotina pouco atraente para os nossos desejos e hábitos mundanos atuais. Sabe-se que amava o xadrez e, é claro, a efervescência dos encontros literários. Mas mesmo as reuniões da Academia Brasileira de Letras, que ajudou a fundar, e da qual foi o primeiro presidente, talvez hoje nos parecessem exageradamente formais, como mostram as atas da entidade. Já os ataques de epilepsia representavam abrutas, mas indesejáveis, mudanças nessa rotina, que não incluiu filhos, e na qual teve a companhia dedicada e inseparável de D. Carolina.

Felizmente, o velho bruxo lançou sementes de sua argúcia e de sua prosa extraordinárias. Só que os frutos da semeadura adquiriram também uma translúcida sutileza. É com alguma surpresa, por isso, que se percebe o quanto há de comum entre a prosa de Machado e a do nosso contemporâneo Luis Fernando Veríssimo.

Abaixo, dois trechos de Dom Casmurro, grifando, no primeiro, o que poderia ter sido escrito, com pequenas alterações de ortografia pelo Veríssimo. No segundo, Machado esboça uma idéia, que é, mais abaixo, recriada magistralmente pelo nosso maior cronista vivo, em O Popular:

"(...) Deles, só o canapé pareceu haver compreendido a nossa situação moral, visto que nos ofereceu os serviços da sua palhinha, com tal insistência que os aceitamos e nos sentamos. Data daí a opinião particular que tenho do canapé. Ele faz aliar a intimidade e o decoro, e mostra a casa toda sem sair da sala. Dous homens sentados nele podem debater o destino de um império, e duas mulheres a graça de um vestido - mas, um homem e uma mulher só por aberração das leis naturais dirão outra cousa que não seja de si mesmos. Foi o que fizemos, Capitu e eu.(...)"

"(...) Tudo o que vejo lá fora respira vida, a cabra que rumina ao pé de uma carroça, a galinha que marisca no chão da rua, o trem da Estrada Central que bufa, assobia, fumega e passa, a palmeira que investe para o céu, e finalmente aquela torre de igreja, apesar de não ter músculos nem folhagem. Um rapaz, que ali no beco empina um papagaio de papel, não morreu nem morre, posto também se chame Manduca".

"(...) Não se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido como o Passante. O Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular nunca. O Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é que fica assistindo à sua prisão. O Transeunte, não raro, se compromete com os acontecimentos. Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular fica com as mãos nos bolsos e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos batedores do que à figura ilustre. O Transeunte pode se entusiasmar momentaneamente com uma frase de comício ou um drama na rua, e aí o Popular é que fica olhando para o Transeunte.

O Popular não tem opinião sobre as coisas. (...) é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu habitat natural é a margem dos acontecimentos. E - este é o seu maior mistério, a chave da sua existência - ninguém jamais conseguiu descobrir o que o Popular leva naquele embrulho. E tem mais. O dia em que pegarem um Popular para desvendarem um mistério, será inútil. Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará atrás do preso, assistindo a tudo."

Um grande momento das letras brasileiras como esse prova que Machado nos mostrou formas inovadoras de pensar e extrair sentidos da realidade, mas de um jeito leve, sintetizando em algumas linhas matéria capaz de encher vários tratados. Dir-se-ia que escreveu com ponta de diamante, excluindo tudo o que fosse excessivo, embora tenha ampliado nossos horizontes lançando mão de um estilo muito peculiar. O escritor valeu-se, por exemplo, do engenhoso truque da expressão contida, levemente pudica, que simula um véu, com o único objetivo de mostrar o que teria tentado esconder.

Eis um dos trechos da Missa do Galo repletos de estudada malícia:

"Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.

- Talvez esteja aborrecida, pensei eu."

No que se refere às questões da mente, Machado abriu espaço para reflexões provocadas pelo bigue-bangue da psicologia, de que foi testemunha. Nesse aspecto, poderíamos situá-lo na esfera de Freud, pois esteve mais propenso a um mergulho na psique individual, vale dizer, do ego, e algumas de suas camadas inconscientes. Revelou-nos, assim, razões e paixões que a máscara social cuidava sempre de velar. Talvez até por isso, ainda que levemos em conta suas inovações, ficou mais patente sua inclinação a conservar e burilar a linguagem. E agindo nessa linha, preservou um sentido de identidade pessoal. Guimarães Rosa, inventor por temperamento, estava mais na zona de influência de Jung, graças a suas conexões com a psique coletiva e uma abertura para o infinito criador, onde tudo se conecta e perde força a singularidade do indivíduo. No espaço habitado por Guimarães assoma ao primeiro plano a força (divina?) da linguagem em constante mutação.

Os dois escritores são homenageados neste ano: Machado pelo centenário de sua morte; Guimarães Rosa pelo centenário de seu nascimento. Sincronicidade, diria Jung. Para os brasileiros, uma grande oportunidade de discutir a literatura e a vida de dois de seus maiores gênios.

Na opinião do escritor e mestre em Letras pela Universidade de Brasília (UnB) Leonardo Almeida Filho, um estudioso de Machado, é preciso ter cuidado ao se usar o adjetivo "pudico" em relação ao velho bruxo. "Machado era sofisticado - e ainda é. O que a gente pode deduzir como uma espécie de luva de pelica machadiana, como fruto de um temperamento pacífico, tímido, recatado, eu creio que é muito mais uma característica estética de requinte e sofisticação, que nos envolve e nos engana. Não é por outro motivo que o Machado pagou o preço de ser acusado - até por Antonio Calado que, logo depois, reconheceu seu erro - de ser alienado. O texto do Machado é um tecido de profunda ironia e pessimismo, descrença e desencanto. O conto Pai Contra a Mãe é exemplar dessa descrença machadiana com relação ao homem. Seu "Humanitismo", em Quincas, é uma peça deliciosa de, permita-me o neologismo, 'desistencialismo'. A sensualidade em Machado é velada, sim, por conta do tempo histórico do autor, mas também por conta, penso, de um assexualismo machadiano. Mas tudo é máscara. Ele escorrega em libido quando lemos 'uns braços'", diz o professor.

Almeida Filho tende a concordar com certo pendor de Machado pela psicologia, mas indagado sobre um pódio com apenas dois lugares, lembra que não se pode deixar de exaltar o gênio rigoroso de Graciliano Ramos. "Se é por falta de efeméride, assinale-se que estamos comemorando em 2008 os 70 anos da publicação de Vidas Secas", cobra o professor.

Das vicissitudes de Machado, já falamos. De Guimarães, podemos mencionar as extenuantes jornadas da diplomacia, que nada lembravam o frescor dos buritizais. E de Graciliano recordemos a tortura diária em busca da verdade, que acabou por levá-lo ao cárcere, e a compulsão ao consumo de cigarros.

O célebre aforismo "Ars longa, vita brevis", atribuído ao grego Hipócrates, pai da Medicina, é normalmente traduzido por: a vida é breve, mas a arte perdura. Pelo menos aquela de boa qualidade.

O debate em torno desse ditado tem levado, no entanto, a outras interpretações, especialmente se observada a frase inteira: "Ars longa, vita brevis, occasio praeceps, experimentum periculosum, iudicium difficile." Uma possível tradução seria, segundo alguns debatedores, "a vida é breve/frágil. A arte (técnica/habilidade), leva tempo para ser obtida. A oportunidade é difícil de agarrar. O experimento é perigoso/traiçoeiro. E o julgamento é difícil".

Sem dúvida, a primeira interpretação atende mais à fantasia comum acerca dos grandes criadores: indivíduos que, ao contrário de nós, tiveram a sorte de perpetrar uma vingança contra a suposta brevidade da vida. A outra tradução se parece mais com o percurso do nosso triunvirato, embora há quem diga que Hipócrates referiu-se à arte da Medicina e da Ciência, e não às artes artísticas. A meu ver, o desafio é o mesmo para quem quer salvar um corpo da morte ou quer eternizar, nas letras, a volatilidade do espírito.

(*) Publicado originalmente pela Agência Senado em http://www.senado.gov.br/AGENCIA/verNoticia.aspx?codNoticia=78584&codAplicativo=2