TALENTO E COMPETÊNCIA, DE ONDE VÊM?

É comum ouvirmos comentários acerca de que uma pessoa tem dom artístico, dom para o futebol, dom para a escrita, dom da oratória. Comentários desse tipo nos remetem à idéia de que cada um já nasce talhado para uma determinada atividade: seria o dom divino legado a cada indivíduo para diferenciá-lo dos demais; seria uma pré-destinação vocacional.

Entretanto, cremos que cada indivíduo é o resultado daquilo que ele, por vontade própria ou impulsionado por forças extrínsecas, ainda que inconscientemente, desenvolveu, praticou e se especializou nessa ou naquela atividade. Vejamos por exemplo o caso histórico de Demóstenes, maior orador da Grécia antiga. Demóstenes era gago e para superar a sua deficiência de dicção passou a exercitar assiduamente discursos em lugares ermos com a boca cheia de seixos: não só se curou da gagueira como se tornou um fenomenal orador.

Se Demóstenes não tivesse praticado seus discursos, se não tivesse exercitado de maneira pertinaz, jamais se tornaria o orador que foi. Alguém poderia afirmar que ele na busca da cura da sua deficiência teria descoberto sua verdadeira vocação para a oratória; eu insisto que ele, na verdade, desenvolveu habilidades a partir da prática e, obviamente, a partir do aprendizado de técnicas da oratória – se ao invés de discursos ele tivesse praticado canto com o mesmo afinco, possivelmente teria se tornado um excelente cantor. É preciso lembrar que nós, os primatas, nos destacamos em relação aos demais animais justamente por só fazermos aquilo que aprendemos, ao contrário dos outros que fazem tudo por instinto ou por condicionamento. Somos nada mais nada menos do que a soma de todas as experiências que vivemos. Um outro grego da antiguidade, Heráclito, disse que “nenhum homem se banha no mesmo rio duas vezes”, isto porque na segunda vez que um homem volta a um rio, nem ele nem o rio são os mesmos do momento anterior; é a lei do eterno “vir-a-ser”. Assim é em todos os aspectos da vida: a cada instante vivemos uma experiência nova que se soma a tudo que foi vivido anteriormente; neste momento já não somos o que éramos ainda há pouco e daqui a alguns instantes não seremos mais o que somos agora.

Os chamados “dons” nada mais são do que aptidões desenvolvidas a partir das experiências pessoais do indivíduo. Vejamos o caso daquela dupla de plantadores de tomates que, para aliviar o cansaço e o stress, entoavam músicas sertanejas durante o trabalho e, de repente, adquiriram habilidade tal que se sentiram seguros para se submeterem a um teste de calouros, da música do gênero que praticavam, em uma emissora de rádio; tornaram-se cantores de sucesso no Brasil.

Escritores como Carlos Drumond de Andrade e Heitor Cony declararam em entrevistas que desenvolveram a habilidade da escrita como forma de superação da dificuldade de comunicação verbal em virtude da timidez pessoal de ambos. Albert Eisntein foi considerado um estudante medíocre durante a infância e na idade adulta viria se tornar o grande cientista que todos nós conhecemos – resultado de profundos estudos a partir de determinada fase de sua vida. Homens como Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler buscaram a superação de seus complexos de inferioridade, originados de situações e circunstâncias vividas em suas infâncias, desenvolvendo habilidades em estratégias políticas e militares que, embora não mereçam apologia do ponto de vista humanitário, ético e moral, não podem ser desmerecidas pela qualidade operacional.

Nenhum jogador de futebol começou como profissional sem um longo histórico de “peladas” e treinos diários; se alguém jogou futebol e não conseguiu se destacar ou foi porque não se dedicou com o afinco necessário ou não teve, por qualquer motivo, a oportunidade ou condições de desenvolver suas habilidades. Nenhum escritor, pintor ou escultor de renome começou no ramo artístico produzindo suas obras primas: passaram por muitos exercícios e estudos antes de decolarem até os píncaros da glória.

É verdade que cada um possui características congênitas que, somadas à sua bagagem de experiências, determina o pendor do indivíduo para esta ou aquela atividade e a maneira de executá-la; entretanto, a atração que o indivíduo sente por uma atividade artística ou profissional será o apenas primeiro passo para ele vir a se um tornar um perito em tal atividade: o segundo passo é o aprendizado pela aquisição de conhecimentos teóricos e exercícios práticos. Características inatas como a inteligência, a sensibilidade e outras de ordem psicofísica, cujo conjunto constituem-se no talento individual, servem de suporte para o desenvolvimento da memorização, rapidez de raciocínio e criatividade, todavia, nada disso é possível sem o aprendizado pela dedicação.

Portanto, os dons não são inatos como se crê o vulgo; são resultados de um direcionamento consciente ou inconsciente do indivíduo para determinada atividade, com aprimoramento na repetição constante e no estudo. As características inatas constituir-se-ão no fator diferenciador de indivíduo para indivíduo na atividade exercida e serão significativas na formação do estilo pessoal.

A idéia corrente de que o ser humano já nasce pronto para uma ocupação profissional e/ou desportiva ou artística é uma forma de supervalorizar tais ocupações e seus praticantes e, conseqüentemente, afastar uma possível “concorrência” de quem não tem oportunidades em defesa dos interesses de quem as tem.