Aspectos estilísticos e semânticos na obra de Manoel de Barros.

Aspectos estilísticos e semânticos na obra de Manoel de Barros.

Raphael Barbosa Lima Arruda, aluno de Letras da Universidade de Fortaleza – Unifor.

Pretendo apresentar neste ensaio, os aspectos estilísticos e semânticos de alguns poemas na obra do poeta cuiabano Manoel de Barros, constantes dos livros: O Livro das Ignorãças, Livro sobre o Nada e Poemas Rupestres.

Nos poemas de Manuel de Barros, há uma forte carga semântica e estilística, pois o poeta brinca com as palavras, mudando, muitas vezes, o significado real que possuem. Como ilustração, cito o poema VI, integrante da parte inicial de O livro das ignorãças (publicado em 1993), chamado “Uma didática da invenção”, parte em que o poeta define como é o seu fazer poético:

No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá

Onde a criança diz: eu escuto a cor dos

passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não

Funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um

verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz

De fazer nascimentos-

O verbo tem que pegar delírio.

Notamos, no poema acima, o relato da origem, mostrando que é notório o valor soberano da Palavra. Sobretudo, o eu lírico faz lembrar das expressões presentes no livro bíblico de João 1:1, que ora: “No começo era o Verbo” e, anterior ao cristianismo, havia uma visão mítica de que Deus empregou a Palavra como forma de expressão e como instrumento de criação de todos os seres.

Está clara a soberania da palavra, pois o verbo no 1° verso é uma metáfora para a linguagem, nos inferindo que o verdadeiro autor de um poema não é nem o poeta nem o escritor, mas sim a linguagem.

Nessa brincadeira poética, o eu lírico manipula a linguagem, introjetando neologismos na incorporação do prefixo des- na palavra “começo” , resultando “descomeço”. Esse termo inaugura um novo paradigma que constrói a transposição do discurso sagrado ao profano. Até mesmo a maiúscula alegorizante do verbo perde-se, por isso, através da inversão estabelecida pela ordem, que há uma transgressão da esfera divina para a profana.

Têm-se dois momentos míticos, são eles: “No descomeço (1° verso) e o “começo” (3°verso). O primeiro nos remete ao tempo inicial marcado pelo “verbo” ; já o segundo é o posterior e formado pelo “delírio do verbo”. Notamos a personificação (prosopopéia) do verbo que se torna exaltado, entusiasmado, assim como temos a informação de que depois do “descomeço” é o “começo”.

Os versos 4 e 5: “Onde a criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos” nos remetem a fala sinestésica da criança, fazendo-nos perceber a mistura de sentidos humanos: audição e visão em “escuto a cor dos passarinhos”.

Em seguida, mostramos novamente nos últimos versos, o processo de personificação do verbo em “a criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som”. No entanto, “caso a criança mude a função do verbo, ele delira”.

Enfim, o verbo é o ser supremo no poema “Didática de uma invenção”, mostrando-nos, o incrível processo de criação literária do poeta.

O poema “A arte de infantilizar formigas” consta no Livro sobre nada, obra editada em 1996, que rendeu a Manoel de Barros o Prêmio Nestlé de Literatura pelo alto grau do jogo de palavras instaurado para criar uma realidade própria:

Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra

- meu avô começou a dar germínios

Queria ter filhos com uma árvore.

Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir

vender na cidade.

Meu avô ampliava a solidão.

No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do

quintal : Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra

dentro.

Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato.

Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou.

Aí a nossa mãe deu entidade pessoal ao dia. Ela deu ser ao dia, E

Ele envelheceu como um homem envelhece. Talvez fosse a maneira

Que a mãe encontrou para aumentar as pessoas daquele lugar que

Era lacuna de gente.

É notório no discurso a forte carga emotiva que o “avô” possui em relação à natureza, pois são incorporados aos elementos da mãe terra como a rã (animal), a árvore (vegetal) e a pedra (mineral), havendo uma nítida integração com esses seres. Dessa forma, o avô passa “a dar germínios”, mostrando a idéia de fertilidade. Tal idéia sobre fertilidade é expressa através da anunciação de seus extravagantes desejos como notamos nos versos 3,4 e 5 “Queria ter filhos com uma árvore./Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir/vender na cidade.”

Nota-se que além da união mística do avô com a árvore (“queria ter filhos com uma árvore), é empregado o verbo “sonhava” que pode ser visto como uma seqüência de eventos psíquicos ocorridos durante o sono, ou como um desejo e aspiração. Essa é uma forma de mostrar os devaneios que perpassavam a mente do avô, quando contemplava a imensurável natureza presente em sua vida.

Quando o avô menciona que “sonhava de pegar um casal de lobisomem”, nos dá uma idéia alógica, pois a expressão “lobisomem” origina-se do latim lupus homo, homem lobo, gênero masculino. Já o termo casal nos remete a idéia da união entre o macho e a fêmea. De fato, o eu lírico desconstrói a lenda, a fim de que haja procriação.

Na seqüência, quando é dita a finalidade desta ação, “para ir/ vender a cidade”, nota-se embutida a noção de comércio que remete a toda e qualquer cidade. Dessa forma, o poema estabelece uma forte oposição entre o primitivo (“lobisomem”) e o não primitivo (“cidade”) que o avô deseja romper.

No verso 6, “Meu avô ampliava a solidão”, o avô surge isoladamente, em liberdade, fato em que explica todos os delírios marcados pelo eu lírico. Dessa forma, o avô apesar de ser um membro da família, apresenta-se distinto de um personagem do cotidiano. O avô parece se isolar da família pelas suas capacidades e qualidades, as quais ele quer estender aos outros, por isso quer ter filhos com uma árvore, vender um casal de lobisomem: afinal, cultivar a inútil poesia.

No que apresenta o verso 7, tem-se outra indicação temporal “no fim da tarde” que remete a uma rotina, conforme expressa o verbo aparecer, núcleo (“aparecia”), núcleo da oração. É interessante ressaltar o aparecimento de “nossa mãe” que, ao contrário de “meu avô”, apresenta-se antecedida pelo pronome possessivo em primeira pessoa do plural. Daí pode-se inferir que o “avô” materializa a liberdade do eu lírico, já a “mãe”, os limites.

No tocante aos versos 8 e 9: “Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem para dentro”, observasse um processo de personificação do dia (prosopopéia) que dá vida ao dia, além do pleonasmos vicioso “entrem para dentro”, típico da linguagem coloquial. Notasse a expressividade do eu lírico por ser fiel em relação à linguagem da mãe, refletindo grande autenticidade dessa situação cotidiana.

Nos versos seguintes temos: “Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato / Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou.” Primeiro, quando se diz “atravessou o olho” é uma metáfora feita a percepção intelectual do eu lírico (a imaginação poética). E o mato, por sua vez, representa o terreno inculto (a escrita poética). Enfim, notasse no verso 11 a ambigüidade no vocábulo “folha” , pois tanto pode se referir a uma parte das plantas , como ao papel que serve para à escrita.

O trecho do poema “Canção do ver”, presente na obra “Poemas Rupestres” de Manoel de Barros, relata-nos o forte poder criativo do poeta em gerar uma realidade própria para os fatos mundanos:

1

Por viver muitos anos dentro do mato

Moda ave

O menino pegou um olhar de pássaro-

Contraiu visão fontana.

Por forma que ele enxergava as coisas

Por igual

como os pássaros enxergam.

As coisas todas inominadas.

Água não era ainda a palavra água.

Pedra não era ainda a palavra pedra

E tal.

As palavras eram livres de gramáticas e

Podiam ficar em qualquer posição.

Por forma que o menino podia inaugurar.

Podia dar as pedras costumes de flor.

Podia dar ao canto formato de sol.

E, se quisesse caber em um abelha, era

só abrir a palavra abelha e entrar dentro

dela.

Como se fosse infância da língua.

Nesse discurso, o eu lírico vive integrado na natureza como se fosse um pássaro. Enxerga como um pássaro, pois para ele as coisas presentes na mãe terra eram iguais, ou seja, viviam em harmonia plena. A arte de criação poética é um recurso utilizado pelo autor para transgredir a esfera da normalidade, ou seja, uma nova realidade é recriada. Enfim, o cerne da poética barrosiana é o cultivo da poesia experimental. Como ilustração, leiamos os versos: “As palavras eram livres de gramáticas e/ Podiam ficar em qualquer posição./ Por forma que o menino podia inaugurar./ Podia dar as pedras costumes de flor. / Podia dar ao canto formato de sol.

Tudo era inominado, pois não havia a austeridade da gramática normativa para nomear os seres como é o caso do substantivo. Notamos, então, a total inversão da ordem natural dos seres, onde também é presente n o trecho seguinte:

2.

A de muito que na Corruptela onde a gente

Vivia

Não passava ninguém

Nem mascate muleiro

Nem anta batizada

Nem cachorro de bugre.

O dia demorava de uma lesma.

Até uma lacraia ondeante atravessa o dia

Por primeiro do que o sol.

E essa lacraia ainda fazia estação de

recreio no circo das crianças

a fim de pular corda.

Lembrava a tartaruga de Creonte

Que quando chegava na outra margem do rio

As águas já tinham até criado cabelo.

Por isso a gente pensava sempre que o dia

de hoje ainda era o ontem.

A gente se acostumou de enxergar antigamentes.

Nos versos 3, 4 e 5 temos a figura de repetição “anáfora” do advérbio de negação “nem”, que é relevante para a intensificação dos conteúdos e estruturação do ritmo na poesia.

É notória a nostalgia predominante no ambiente em que o eu lírico vive, pois tudo se reduz ao nada. Há uma metáfora em relação ao tempo que passa vagarosamente em “O dia demorava de uma lesma”. Ainda menciona as ações de uma lacraia que atravessava o dia, fazendo estações de recreio no circo das crianças, havendo uma relação harmônica desse inseto traiçoeiro com as crianças.

Tamanha era a vagarosidade do dia que o eu lírico fica preso às imagens pertencentes às reminiscências de sua infância. Para mostrar novamente a morbidez do dia e o rico processo criativo do autor, citemos um outro trecho presente no poema Canção do Ver:

3

Pela forma que o dia era parado de poste

Os homens passavam as horas sentados na

Porta da Venda

De Seo Mané Quinhentos Réis

que tinha esse nome porque todas as coisas

que vendia

custavam o seu preço e mais quinhentos réis.

Seria qualquer coisa como a Caixa Dois dos

Prefeitos.

O mato era atrás da Venda e servia também

para a gente desocupar

Nem as emas solteiras que despejavam correndo.

No arruado havia nove ranchos.

Araras cruzavam por cima dos ranchos

conversando em ararês.

Ninguém de nós sabia conversar em ararês.

Os maridos que não ficavam de prosa na porta

da Venda

Iam plantar mandioca

Ou fazer filhos nas patroas

A vida era bem largada.

Observa-se a ociosidade dos homens que só freqüentavam a venda de “Seu Mané Quinhentos Réis”. Temos presente o desvio ortográfico em “Seo Mane”, típicos da linguagem coloquial.

É bem claro o comportamento do homem, dos cachorros e das emas no momento de fazerem as necessidades, quando, o eu lírico utiliza os verbos “desocupar” e “despejar” que remetem a um eufemismo para outros verbos que trazem uma conotação mais pejorativa como “obrar” ou “defecar”.

Como ultimo recurso, o autor utiliza o neologismo “ararês” que era a língua falada pelas araras que cruzavam por cima dos ranchos.

Por fim, devido a falta de opção, os homens que não se restringiam a freqüentar a venda, ou plantava mandioca o faziam filhos nas patroas.

Assim, tem-se como cerne na poética de Barros a completa transposição das palavras, mudando o seu significado próprio, trazendo, pois, a composição de um novo mundo que é habitado por seres presentes da mãe natureza como o pássaro, a rã, a árvore, o cachorro etc. De forma análoga, encontramos a representação de pessoas que servem como elo na desmistificação de seu fazer poético.

Referência Bibliográfica

BARROS, Manoel de. 1994. O livro das ignorãças. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

------. 1996. Livro sobre o Nada. Rio de Janeiro: Record.

------. 2004. Poemas Rupestres.Rio De Janeiro: Record.

MONTEIRO, José Lemos. 2005. A Estilística: Manual de análise e criação do estilo literário, 2.ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.

ILARI, Rodolfo. 2004. Introdução à Semântica: brincando com a gramática, 5.ed. São Paulo:Contexto.

Raphael Arruda
Enviado por Raphael Arruda em 02/11/2008
Código do texto: T1261335
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