Folclores da desinformação

Meu intento original era escrever sobre um evangelho desconhecido, muito popular em seu tempo, mas que acabou vetado do que se tornou o novo testamento da Bíblia e quase desapareceu da existência em virtude disso. Por sorte e capricho do destino, um exemplar dele foi encontrado no Egito, juntamente com dezenas de outros textos que integraram as origens do cristianismo antes da Bíblia conhecida ser inventada.

Mas meu intento original ficará para outra ocasião, pois enquanto seu corpo ganhava forma em meu monitor, outra idéia intercedeu. Uma conclusão óbvia pouco falada em nossos tempos ou em qualquer tempo.

Vamos a ela.

A mania hoje é questionar tudo, tudo o que foi tabu em séculos anteriores virou objeto de dúvida e contestação, algo, a princípio, producente na busca pelos conhecimentos supremos, mas que, no fim, pode desembocar em mentiras até piores do que as que supostamente buscava desmascarar.

Um exemplo deste fenômeno é a onda de documentários e obras de "ficção-realidade" sobre as possíveis origens do cristianismo. Se em outras eras, questionar os dogmas da Bíblia era tabu, hoje é a ordem do dia. Mas questionar não basta. É necessário "preencher" as lacunas abertas, e, para isso, nada melhor do que as dezenas de evangelhos, cartas e revelações que não puderam fazer parte das escrituras. Assim, os textos canônicos ganham aura de suspeitos enquanto os apócrifos viram "provavelmente verdadeiros", uma vez que a sede do público por verdades acobertadas sobre a origem de Jesus é maior que sua boa vontade de avaliar fatos com esmero. E é essa sede, essa vontade de um grande espetáculo, de um filme sobre uma conspiração para esconder o maior segredo da história, enfim acessível aos mortais, é que move a industria cultural na elaboração de seus novos folclores.

Se na antiguidade havia intenções escusas regendo a escolha dos postulados que virariam verdade e dos que deveriam ser apagados do conhecimento, hoje, pelo menos no que diz respeito ao material produzido para o grande público, a situação mudou pouco. O documentário X do Discovery Channel sobre extraterrestres precisa manter a chama dos aficionados por ufologia acesa, passar a impressão de que um grande mistério está para ser desvendado e de que há conspirações para acobertar a existência de alienígenas a nossa volta. Para isso, as partes chatas, maçantes, complicadas, discordantes, multiconclusivas ou inconclusivas pesquisadas sobre o assunto devem ser aparadas, apagadas, modificadas, simplificadas e adaptadas ao objetivo do programa que é satisfazer a sede de teorias de seu público. Não agir assim implica na inviabilidade do documentário como produto. Sua proposta documentarista é um pretexto. Sua natureza é ser espetáculo, entreter uma geração de consumidores acostumada a refletir pouco e assimilar verdades sensacionais que façam suas vidas parecerem um filme. Michael Moore aprendeu a lição e hoje ganha fortunas usando fragmentos de fatos para contar suas histórias bombásticas. Algumas delas até têm fundamento, mas deixá-las revelar-se em seus prós, contras, "poréns", entrelinhas monótonas, complicações, lacunas abertas e inconclusões diminuem seu poder de filme e best-seller, e, ao público, as histórias precisam fazer sentido, seguir em uma direção, apontar esquemas simples, causas, vilões: "O problema é aqui, o culpado é aquele, eis é a solução! Óbvio! Como é que não vimos antes?"

Como outros ao longo da história, Adolf Hitler aprendeu que, para manipular povos, é necessário um discurso simples com um dilema simples. Complexidade gera descontentamento, paralisia e predisposição a qualquer um que apareça com uma verdade mais estimulante. Os produtores da indústria cultural sabem disso. Sabem que estão competindo pela atenção e fidelidade emocional de um consumidor viciado. E entre centenas de presentes na vitrine, o da embalagem mais bonita pode não ser o melhor, mas está visível e seduz.

Luiz Mendes Junior
Enviado por Luiz Mendes Junior em 24/02/2009
Código do texto: T1454656
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