A Pretexto da Utopia

A PRETEXTO DA UTOPIA

Carlos Frazão

I. Quando Thomas More publica a sua obra emblemática com o título "Utopia", dá origem à emergência de um novo vocábulo e, por arrastamento, ao que se passou a designar por pensamento utópico, com toda a carga semântica que a expressão em si preconiza. Independentemente da ambiguidade que a palavra forjada por More encerra, ou seja, da dificuldade em determinar-lhe um conteúdo preciso e rigoroso, o que parece límpido é que a utopia não é um conceito puro, neutro ( se não o é na sua invenção, nunca o poderia ser na sua utilização ), sendo objecto de uma valorização - tanto polémica como contraditória - no desenvolvimento do seu uso discursivo e contextual; o que lhe conferiu, desde logo, um campo genérico de aplicação e uma progressiva perda de precisão. Digamos, contudo, que atendendo às características do texto de More, atribuir-se-á à utopia essa dimensão paradigmática que não lhe escapa: " (...) representação de uma sociedade radicalmente outra, situada no algures definido por um espaço-tempo imaginário; representação que se opõe à da sociedade real, existente hic et nunc, bem como aos seus males e vícios " .

Sendo assim, é importante afirmar que é na compreensão da articulação, sempre complexa, entre o que é e o que deve ser, ou, por outras palavras, entre o real e o ideal, que reside o que de mais profícuo enforma uma investigação sobre o paradigma utópico. Efectivamente, " o ponto de vista utópico, ao contrário do científico, constitui-se no desvio relativamente ao real, e que não se traduz numa fuga - o que seria alienação - mas numa confrontação com um certo modelo de sociedade. A utopia não aborda o real para lhe apreender as leis e estruturas imanentes, mas para o julgar segundo certas exigências fundamentais, ínsitas a uma vida verdadeiramente humana. O que a utopia introduz, prioritariamente, são critérios pelo qual o real deve ser medido, confrontado e julgado; e o real que lhe não corresponda é denunciado como falso. A utopia potencializa ao máximo a dialéctica entre o real e o ideal " . Na verdade, a crítica à sociedade instituída só ganha consistência porque, face a essa ordem social ( o real ), a utopia se propõe alterar radicalmente a irracionalidade que ela manifesta, a partir de princípios e fundamentos balizados pela invenção de uma sociedade outra ( o ideal ), ou seja, um algures a instituir que realize a plena felicidade humana.

II. Entre as várias interpretações e investigações do fenómeno utópico, é de salientar o contributo proeminente de um dos mais distintos representantes da designada " Escola de Frankfurt ": referimo-nos a Ernst Bloch e às suas obras " O Espírito da Utopia " (1918) e " O Princípio da Esperança " ( 1959 ).

No núcleo do pensamento de Bloch afirma-se explicitamente o valor positivo da utopia, enquanto teoria crítica que projecta na esperança a crença de uma sociedade outra no futuro. Utopia e esperança são, aliás, dois conceitos indissociáveis do pensamento deste autor. Crítico do marxismo, ao abandonar o realismo científico ( G. Lukács manteve com ele uma acesa polémica sobre o tema ), adere à tradição utópica de filiação kantiana . Juntamente com H. Marcuse, reconheceu que o percurso deverá ser o que vai da ciência à utopia e não, como pretendia Engels, da utopia à ciência. Sob a influência de Schopenhaeur, estabelece uma relação filosófica surpreendente entre a música e a utopia. A ausência de imagens e de uma forma narrativa não tornam a expressão musical ininteligível. Também na utopia o " ainda não " permite encarar antecipadamente a sociedade do futuro. Se não há uma definição precisa da imagem dessa sociedade no " mais além ", isso não implica que a utopia não possa funcionar como instrumento crítico de uma ordem instituída, julgando-a em nome das alternativas a realizar. Para Bloch ( que veio a influenciar a hermenêutica de Paul Ricoeur ), " a interrogação sobre a utopia confunde-se com uma hermenêutica geral da cultura, ela própria idêntica a um trajecto solidário com uma prática social orientada para uma utopia concreta (...). Assim, segundo Bloch, a utopia seria um fenómeno cultural tão omnipresente como proteiforme, um apelo permanente ao futuro " . Para este filósofo da utopia ( esperança ), que nunca deixou de reconhecer no marxismo uma fonte de referência, embora rejeitando a dicotomia tradicional entre utopia e ciência, a História deve ser lida segundo o princípio da Esperança. Esta constitui como que a substância que percorre a totalidade das práticas culturais, desde os actos individuais às acções colectivas. Se, por vezes, esta função compulsiva de se realizar utopicamente surge obscurecida, tal não significa a diluição da vontade constante de fazer emergir no presente a " paisagem desejada " de um futuro antecipado. Em Bloch joga-se decisivamente uma ontologia do futuro, ou seja, convida-nos a reconstruir os fins últimos da História a partir das representações de uma consciência utópica.

Outras trabalhos e outros autores poderiam ser aqui citados, como, por exemplo, as ideias de Karl Mannheim, desenvolvidas a partir da oposição utopia / ideologia. Ou, mais recentemente, as investigações no domínio da hermenêutica de Paul Ricoeur, que abordam a ideologia e a utopia como " duas expressões do imaginário social ". O nosso objectivo, porém, não pretende ser exaustivo, mas apenas focar alguns dos aspectos que nos parecem pertinentes para se pensar a actualidade do pensamento utópico. Daí a oportunidade de falar agora de uma outra modalidade de oposição à utopia: a contra-utopia ( distopia ).

III. A importância do fenómeno da contra-utopia, também ele complexo e multiforme, é, de facto, fundamental para o problema em questão. Se inicialmente ( é a partir do século XVIII que se pode falar com propriedade de contra-utopia ) se tratou de uma descrença marginal face às possibilidades de transformação real das sociedades ( desde a ironia de Jonathan Swift ao pessimismo de Voltaire ) - embora não abdicando duma crítica vigorosa à ordem instituída -, rapidamente evoluiu, já no nosso século ( concretamente, a partir da Primeira Guerra Mundial ) como discurso dominante de um certo pensamento político e filosófico; ao mesmo tempo que impôs uma inversão a essa atitude inicial: agora não se trata de descrença ou pessimismo, mas de recusa do próprio imaginário utópico.

Karl Popper, filósofo contemporâneo, acredita na viabilidade das utopias, elas são realizáveis ( como, aliás, para Huxley ). Ora, esse facto não é uma esperança, é um perigo, uma ameaça. A utopia é um contra-valor. O optimismo está, agora, na convicção de que contra a sociedade utópica, fechada, totalitária, é possível e desejável opor a sociedade aberta, liberal, democrática. A própria adjectivação é elucidativa do pensamento deste autor. Também Francis Fukuyama ( cujas posições não são necessariamente coincidentes com Popper ) recusa qualquer opção utópica; esta já não faz parte da praxis política. Embora não deixe de apontar a existência de problemas e de conflitos políticos e económicos, defende que não há alternativa à democracia liberal ou ao sistema global de produção capitalista. Assistimos, de acordo com ele, ao fim das ideologias, da discussão política e ao triunfo das virtualidades da economia de mercado e do modelo eleitoral como forma de nomeação das instituições políticas. Com a sociedade pós-industrial, capitalista e liberal, a história chegou ao fim, ao fim de um processo evolutivo - não aleatório - e, portanto, também a história cumpriu a sua finalidade .

Alguns comentários são devidos. Se é um facto que o liberalismo económico teve nos primeiros anos da década de noventa fervorosos adeptos dessa política ( hoje há menos optimismo e mais moderação ), poderemos perguntar, muito legitimamente, a que preço, considerando um conjunto de problemas - muitos deles agravados - que afectam as sociedades à escala planetária: exclusão social, desemprego, aumento da pobreza, desperdício de recursos, degradação ecológica, subdesenvolvimento... Questões pertinentes que deveriam embaraçar os partidários da imperante doutrina capitalista, como Fukuyama, mas perante as quais não nos fornecem qualquer resposta convincente . Tanto no plano económico como no plano político a História não está realizada; é o próprio decurso imponderável e contingente dos acontecimentos que o revela, enquanto processo aberto a múltiplas possibilidades.

Como entender e aceitar a ideologia do fim da política, das ideologias e das utopias ( Bobbio sentiu a necessidade de repensar as referências ideológicas que motivam as filiações políticas, numa obra cujo título é elucidativo, "Direita e Esquerda" ) quando é fácil detectar focos de convulsão e agitação social que nos relançam para questões, no plano ético-político, que aparentemente pareciam estar pensadas? Certos valores de alguma consensualidade e, por isso mesmo, menos discutíveis, surgem ameaçados e postos em causa, merecendo a reinvenção de novos paradigmas de análise, associados à criação e ao estabelecimento de uma instrumentação vocabular e conceptual capaz de reflectir uma realidade complexa e em contínua mutação.

Como sabemos os problemas hodiernos já não se colocam a nível local, têm uma dimensão universal. Os conflitos e as contradições vividos e experienciados na aldeia global afectam a comunidade humana no seu conjunto. Não se trata apenas de afirmar a existência de uma economia sem fronteiras - ou seja, da universalidade das forças produtivas e das relações de produção -, cuja lógica, só por si, arrasta outros fenómenos de consequências múltiplas, nomeadamente o empobrecimento progressivo das regiões mais pobres e o enriquecimento acelerado das mais ricas; é este carácter global e dinâmico que nos leva a reconhecer que não há um mundo realizado e um mundo a realizar, mas que há um mundo onde se interpenetram várias forças de acção e de reacção, de fluxos e refluxos, determinando um cenário de influências recíprocas a todos os níveis: desde o económico ao social, desde o político ao cultural. Na actual conjuntura histórica, tem de se reconhecer que, não só as democracias liberais não resolvem focos de conflitualidade social e política em si mesmas gerados, como constroem parte das suas economias na base da exploração dos recursos e de uma mão de obra barata e não reivindicativa dos países ditos em vias de desenvolvimento. Porque não formular então, como hipótese séria, que as economias de mercado dos países mais ricos exigem às suas instituições uma matriz democrática e liberal - condição da sua eficácia -, ao mesmo tempo que beneficiam da existência de " ditaduras ", onde os problemas sociais, salariais, ecológicos, são sufocados ou secundarizados? A chamada globalização não tem sido a globalização do progresso e do desenvolvimento. Pelo contrário, tem sido a reprodução de um sistema que favorece as assimetrias - interna e externamente - de um modo intolerável. A um ritmo que não pára, os problemas agudizam-se, exigindo - uma cada vez mais reclamada - nova ordem mundial .

Estas questões não estão presentes no pensamento de Karl Popper quando divide os regimes em " bons " (as democracias liberais ) e " maus " ( as ditaduras ou tiranias ). Como, aliás, parece também ter esquecido, nessa sua tão vincada divisão, que foi o regime democrático alemão que sufragou o nazismo; ou que o maccarthismo não foi um fenómeno de uma qualquer ditadura, mas uma manifestação vergonhosa de prepotência e ilegalidade ocorrida nos Estados Unidos. Por muito que custe aceitar, não é certo que este tipo de ocorrências, ou outras similares, estejam definitivamente erradicadas das democracias ocidentais.

Só na parte final da sua vida é que Popper se mostrou apreensivo com algumas formas simuladas de violência presentes nas democracias liberais. Concretamente, referiu-se ao poder incontrolado dos meios de comunicação audiovisual ( a que chamou o quarto poder ) como uma ameaça à liberdade de pensamento e sentido crítico. Mas, é necessário denunciar outras expressões preocupantes de violência e mal-estar, como o retorno a doutrinas de inspiração nazi-fascistas ou a eclosão de movimentos racistas e xenófobos.

Na teoria política de Popper podem identificar-se as suas posições epistemológicas. " Segundo Popper, o critério mínimo de democraticidade assemelha-se ao critério de cientificidade; é democrático o regime no qual os governantes podem ser substituídos sem violência. Como em ciência, ao processo indutivo propõe que o critério de demarcação científica seja a falsabilidade, em política, à maximização da felicidade do utilitarismo propõe um género de utilitarismo negativo, isto é, a minimização da infelicidade para o maior número. Assim ao ideal utópico, opõe o da engenharia social gradualista, o método duma melhoria progressiva por ensaios e erros; com efeito, importa conceber as instituições sociais como máquinas mais do que como organismos . Acrescente-se que é esse mesmo critério que o levou a recusar o historicismo - eixo de todo o pensamento dialéctico -, argumentando com as consequências teóricas impostas pelo indeterminismo e incerteza da física quântica.

O antimarxismo de Popper ( ele tornou-se, sobretudo na Europa Ocidental, o ideólogo dos intelectuais anti-comunistas ) filia-se, como já o compreendemos, na apologia entusiástica do modelo económico capitalista e liberal. A sua doutrina política é um programa que reflecte a necessidade de reformas de cariz social-democrático. Reformas a nível de um sistema cuja legitimidade ( racional ) não se questiona nos seus fundamentos, mesmo admitindo processos possíveis de evolução. " (...) se Popper permanece um intrépido defensor da razão, a sua concepção da engenharia social gradual revela-se limitada: pretende agir dentro das hipóteses da sociedade existente; ou, porventura, visa uma subordinação da razão às hipóteses da ordem existente " . Daí, a leitura maniqueísta que Popper faz dos regimes políticos. Daí, também, a recusa de todo o pensamento utópico, enquanto projecto de alternativa social.

IV. Só com alguma ingenuidade se pode aceitar a priori a dicotomia entre os " bons " e os " maus " regimes, como se tudo estivesse resolvido nuns e por resolver noutros. É necessário atender às novas complexidades que hoje emergem. Torna-se urgente aprofundar a ideia de democracia, reorganizar os ideais políticos, construir quadros de referências, inventar utopias mobilizadoras. Certos conceitos, como os direitos do homem ou como o Estado de Direito, exigem a construção de novos paradigmas, como já afirmámos, suscitando um amplo debate cultural em torno do que hoje se pode entender por direitos fundamentais do indivíduo e por intervenção dos poderes públicos como instância ético-política de regulação da ordem social.

Abre-se, actualmente, à reflexão e à argumentação filosóficas um quadro alargado de problematização. A discussão parece centrar-se, fundamentalmente, entre dois pólos: o racionalismo e o relativismo. Por outras palavras, há algum princípio fundacional que a razão possa legitimar para si, ou, pelo contrário, lidamos apenas com um certo modelo de racionalidade - entre outros possíveis -, sujeito aos circunstancialismos impostos por determinados contextos históricos ?

A discussão não é inocente; a sua origem remonta a um sentimento, generalizado, de crise dos ideais de progresso veiculados pelo Iluminismo. O século XX assistiu a situações impensáveis de barbárie, quer sob a forma de campos de extermínio, de totalitarismos, de guerras absurdas e demolidoras, quer sob a forma de atentados sistemáticos ao equilíbrio do planeta. Todos estes fenómenos contribuiram para a crise de uma razão cujo programa de ilustração, tudo o indica, ficou por cumprir ( pense-se nas obras de autores como Wittgenstein, Benjamin, Heidegger e, mais recentemente, Lyotard, Rorty, todos eles críticos da razão iluminista).

Este mesmo debate desenvolve-se nas áreas da epistemologia e da política. A racionalidade científica coloca-nos perante a questão das possibilidades do conhecimento nos fornecer alguma verdade sobre o " real ", ou de apenas lidarmos com esquemas interpretativos e discursivos que o tornam apenas objecto do(s) nosso(s) interesses(s) ( N. Goodman fala de uma pluralidade de versões do mundo ). Politicamente, o pensamento interroga-se sobre a forma de governo " ideal ", questionando se a opção democrática se impõe pelos seus próprios fundamentos racionais, ou se há alternativas ( com outros objectivos ) igualmente legítimas e possíveis.

Áreas que se cruzam pelas implicações que suscitam. A defesa de um relativismo filosófico e epistemológico tem consequências no plano político. Prescindir da vontade de verdade e da pretensão epistemológica de avaliar a relação entre as ideias e o mundo, transforma o problema da racionalidade dos fundamentos ético-políticos. Se todas as crenças, hipóteses e escolhas são válidas, se a argumentação é um jogo de eficácia retórica, qual a legitimidade da preferência democrática?

Mas à fundamentação da racionalidade não escapa, ainda, uma outra vertente que a ela se associa: a irracionalidade - que nos desperta para a consciência da duplicidade humana: somos sapiens e somos demens. Há algo que habita em nós de modo desmedido e caótico, impondo limites à inteligibilidade racional. Somos alertados para a existência de uma demência intelectual que impossibilita o conhecimento, no seu objectivo aparente, de tudo pretender reduzir à identidade e ao uno. Há sempre uma brecha entre o pensamento e o mundo que está por preencher. Não será este vazio, esta abertura, o espaço apropriado para a construção dos instrumentos simbólicos e de acção para interpretar, imaginar e intervir no mundo? Não é aqui que se situam, conflitual e contingentemente, os valores, as ideias, as práticas culturais, os vocabulários, os ideais, as utopias ?

A contemporaneidade confronta-se com um cenário de questões cujo núcleo - e é aqui que queremos chegar - reside no aprofundamento crítico dos ideais do iluminismo ou na sua superação. Com efeito, " a era da razão, aquela que outrora havia difundido na civilização mundial um pathos de igualdade, liberdade, progresso e tolerância, mostra-se hoje debilitada. As catástrofes políticas do nosso século parecem uma confirmação de velhas profecias; contudo, a referência à razão ocidental, como o faz Habermas é exequível; quer dizer, à modernidade europeia, embora assinalando continuamente as patologias duma modernidade, ou melhor, de um tipo de modernidade fracassada, deve relevar-se que não está esgotada. Sem dúvida, seríamos ingénuos e incorrer-se-ia em relapso anacronismo, se a tarefa da filosofia política se moldasse pelas pautas dos ilustrados à maneira clássica. A tarefa do cidadão dos anos 90 reclama mais: à filosofia política compete o exercício da pós-ilustração, o que significa que é tributária das Luzes, cujo legado se cifra no racionalismo crítico " .

Habermas introduz uma nova abordagem da razão, pretendendo reabilitá-la contra os filósofos que recusam qualquer fundamento, de Lyotard a Foucault, de Derrida a Rorty. A proposta de Habermas reside no conceito de " ética da comunicação ", para o qual remete a definição de verdade: um acordo ou consenso alcançado num universo de pessoas por intermédio da discussão crítica e livre. A argumentação é a expressão de uma racionalidade prática que tem regras de moralidade implícitas.

Rorty é particularmente crítico em relação às posições de Habermas. A " razão comunicativa " designa-a por um jogo de contingências, sem valor absoluto. A pretensão filosófica de " fundacionar " as nossas crenças, afirma, está votada ao insucesso. Podem existir crenças mais ou menos úteis, mas a opção não está em qualquer fundamento transcendental que a razão ilumine, mas na eficácia contextual em adoptar umas e recusar outras. A filosofia não fala o discurso da verdade, é apenas uma forma de "conversação " que pode proporcionar prazer estético. Na utopia de Rorty ( a expresão é sua ) é compatível a liberdade individual e a concretização de uma sociedade colectivamente melhor. A eventual contradição entre o individual e o colectivo é o resultado de avaliarmos os termos segundo uma perspectiva tradicional metafísica. O filósofo já não será mais o idealista, o intelectual platónico, será o " ironista liberal ", que pensa a crueldade como o pior dos males e a solidariedade como o sentimento a aprofundar entre os homens. " Na perspectiva que estou a pensar, o progresso moral existe e esse progresso vai efectivamente na direcção de uma maior solidariedade humana. Mas tal solidariedade não é pensada como sendo o reconhecimento de um eu central, da essência humana em todos os seres humanos. É antes pensada como sendo a capacidade de ver cada vez mais diferenças tradicionais ( de tribo, religião, raça, costumes, etc. ) como não importantes, em comparação com semelhanças no que respeita à dor e à humilhação - a capacidade de pensar em pessoas muito diferentes de nós como estando incluídas na esfera do nós " . O " Ironista ", livre de todos os fundamentos e convicções transcendentais, procura a construção utópica de uma " humanidade poética ".

A polémica está longe de estar encerrada, assinalando-se novos contributos para o debate - com H. Putnam, J. Rawls e D. Davidson, entre outros -, não na busca de respostas definitivas que ponham fim às controvérsias, mas na tentativa de compreender os desafios que a História vai colocando e que não deixam nunca de nos surpreender.

Novembro/2000