Epidemia e Cura

Epidemia e Cura

Não começou no centro carioca com Xisto Bahia, em 1860. Não senhor. Começou muito depois. Cem anos depois.

Foi se alastrando de tal forma, bem o resultado está aí. Precisamente. Uma espécie de loucura. Tem um tal efeito sobre o sistema nervoso que, como dizer, milhões de pessoas se tornam loucas por períodos variáveis de algumas horas. Essas horas se transformam em semanas, meses, os períodos vão se repetindo, cada vez com maior freqüência, e isso acaba perdurando durante 15, 30 anos. Você duvida?

Na época do Xisto outros ideais pairavam sobre os cidadãos, outros costumes. Para você ter uma idéia, Francisco de Paula Brito, "o primeiro editor digno deste nome que houve entre nós", e mais os compadres Machado de Assis, Gonçalves Dias, Laurindo Rabelo e outros, iniciaram um troço chamado Sociedade Petalógica. Nada de mais, você sabe, filosofia, poesia, música. Não sei se o Xisto freqüentava a tipografia

do Paula Brito.

Quinze, trinta anos, é a duração da doença, com certeza, ou melhor, enquanto o sujeito agüentar. As vezes agüenta menos, ou tem menos sorte. E os que estão à sua volta tem a fortuna variada. Oh sim, visto que o sujeito fica louco, mas quem está perto não passa incólume. De qualquer forma, durante esses períodos de loucura se cometem atos tão destrutivos, mas tão destrutivos, que as vidas material e espiritual de outros milhões de brasileiros são duramente afetadas. Já não estamos falando de poesia mas do âmbito dos negócios, da indústria, do comércio, você sabe, e com essas crises de loucura esses nichos, e outros nichos, são sabotados. Convenhamos que disso resulta um custo incalculável a nação. Sim, estamos falando dos dias de hoje. Sim, podemos colocar, por alto, que 1960 seja uma data plausível para o início dessa epidemia, que deixa as pessoas completamente fora de si.

A Sociedade Petalógica que esses caras fundaram teve, para os historiadores do futuro, a seguinte tarja: “cumpriu o papel de mediadora de culturas distintas - a dos literatos e a dos artistas”. Imagine. Já te disse, não sei se o Xisto fez parte, mas era um artista e estava no mesmo local e na mesma época.

Essa doença, epidêmica, também já vimos isso, reúne a qualidade peculiar de poder alterar o juízo de suas vitimas de tal modo que se tornam incapazes de se reconhecerem doentes, chegando a querer, a todo custo, tornarem-se cada vez mais doentes.

Laurindo Rabelo, um dos fundadores da Sociedade Petalógica, tinha o apelido de Poeta Lagartixa. Já viu isso? Durante anos ele morou na casa de outro poeta, João Cunha, também conhecido como Cunha dos Passarinhos. Cronistas da época, sim estamos falando de 1860, (mais ou menos) contam que o Poeta Lagartixa se punha de ceroulas a cantarolar: “estamos casados, João”.

O resultado da epidemia é espantoso mas somente agora faz-se possível conhecer seu real tamanho. Com isso colocamos mais 50 anos na conta (mais ou menos). Em torno de 1960 a epidemia começa sutilmente a se alastrar. Como um dos sintomas é a negação da doença, e como ela dura de 15 a 30 anos (mais ou menos), e como os doentes querem ficar cada vez mais doentes, e como causam estragos formidáveis todos os dias no país inteiro e não se sabe da cura, ou melhor não se sabia, pode-se pensar que uma espécie de caos esteja em andamento, justamente em virtude desta epidemia. Precisamente. Estamos falando de 2009, e seus sintomas um tanto caóticos.

A rigor, do ponto de vista do bem estar e da criatividade, os que circundavam Xisto e os integrantes da Sociedade Petalógica ficavam felizes e se acrescentavam espiritualmente, ao passo dos que estão próximos aos infectados desta estranha epidemia correm risco de vida e quase sempre são afetados materialmente.

De fato, estamos falando de um grave problema.

“Quis debalde varrer-te da memória”, uma canção que deixou o Xisto mais célebre ainda, entra nesse ensaio para instigar um complexo contraponto na loucura varrida que parece surrupiar a memória dos afetados que, como já se disse, fazem de tudo para tornarem-se cada vez mais doentes.

O grande entrave fica por conta do desaparecimento da Sociedade Petalógica - o que equivale a extinção de um agente mediador - algo por si só extremamente necessário no presente momento, tudo isso por um lado, e por outro, a real necessidade de contratação de milhares de cientistas, sim, milhares, para achar a cura que causa tantos malefícios a milhões. Como é possível perceber, não temos milhares de cientistas a disposição, nem mesmo como voluntários.

Todavia, dois sujeitos sem nome engendraram a cura. Nessa altura nomes não são importantes. Nunca ninguém quis saber quem foi o autor da canção “A mulher”, mas o Xisto ainda estava vivo quando um violeiro se punha debaixo de um lampião e cantava: “A mulher, esse dragão da humanidade/Que obra mais perfeita maculou/Não é dado do crime abstrair-se/ Pois ferrete fatal a indigitou”. Só mesmo um autor desconhecido para compor um troço desses. Talvez por isso permaneçam a salvo do público os dois sujeitos que vislumbraram a cura para tão terrível doença.

O público raramente compreende.

Enfim, os dois sujeitos foram tocados por uma espécie de luz. Uma luz, aventa-se, da mesma espécie que pairava sobre Xisto e os integrantes da Sociedade Petalógica.

Só que esses nunca estiveram doentes. O que me faz atinar não ser necessário estar doente para relacionar-se com a luz. No entanto, para curar-se...

Ainda com relação a nomes, urge salientar que a própria epidemia não tem nome, ou, se tem, permanece ocultado pelas autoridades. Do que se tem ciência é a conta de cientistas especialistas em cálculos: todos tem um parente, amigo ou conhecido que é portador deste estranho vírus. Mas ninguém fala.

Voltando a cura, os dois sujeitos entraram em contato com a luz, pois estavam tão loucos como os demais, se aperceberam disso, e tiveram uma visão. O que me leva a atinar que a luz lhes possibilitou a visão. Deixando claro que isto ser um ensaio. Nada mais. Palavra esta que pode ser encarada como experimento ou encenação. Grosso modo.

A visão que os dois sujeitos tiveram, apesar de parecer metafórica, foi rigorosamente real.

Estavam eles então passeando numa bela verdejante planície, pois parece que esse é justamente o prêmio para os abençoados que conseguem livrar-se da epidemia – passear numa planície verdejante, quando viram um pássaro subindo para o céu, entregando-se às poderosas correntes de ar das montanhas que contornavam a planície. O pássaro era levado pelo vento. Mergulhava, se elevava, mergulhava de novo, fazia coisas impensáveis.

Foi quando um deles disse:

- O pássaro faz tudo isso porque não está lutando contra o vento.

- De fato – ruminou o outro – nunca vi uma criatura fazendo uma entrega tão grande.

Tendo a ave saído de cena alguns instantes depois, eles se puseram de volta, queriam contar aos outros, os que ainda estavam ensandecidos, que era possível curar-se, sobretudo, era possível perceber que se estava num estágio inacessível à compreensão de si mesmo, e que a despeito de tudo que pudesse ser concebido pelo espírito humano, era bom lembrar de que algo maior animava tudo e todas as coisas, e que tão logo eles se percebessem livres da epidemia, poderiam ver coisas deslumbrantes e até mesmo cantar, como cantava Xisto Bahia.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 09/06/2009
Reeditado em 08/04/2013
Código do texto: T1640268
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