XXX - Não é da sua conta, velha muxibenta

Douglas Hernesto Sanoj achou muito estranho o modo como aquele pequeno ser lhe tratara.

“Parecia que continha muito cinismo em seu olhar de criança”.

“Crianças não sabem mentir. Deixam transparecer, de alguma forma, fatos reais em seus olhos puros”.

“Os olhos são as janelas da alma”, já dizia o poeta, confabulou Douglas Sanoj a entrar no botequim e pedir um rabo de galo para acalmar os nervos.

“Agora tenho que voltar ao escritório, terminar o hábeas corpus e livrar meu amigo daquele lugar”, pensou a olhar dentro do copo que se esvaziava em sua boca.

Pela idoneidade de Miguel das Neves Alves, seu passado e contribuições sociais, além de uma arbitrariedade judicial, pois naqueles moldes sua prisão era ilegal, o juiz concedeu-lhe liberdade.

Douglas Hernesto Sanoj trabalhara bem.

Conseguiu livrar seu amigo da prisão e agora estavam juntos na caçada aos assassinos de fato.

“Conte-me os últimos acontecimento Dr. Douglas”, interrogara-lhe Miguel.

Douglas Hernesto Sanoj lhe disse o que tinha captado nas últimas horas e achava que os assassinos estavam perto demais.

Viam tudo de camarote e não estavam preocupados com o crime cometido.

“Vamos agarrá-los”, esbravejou o liberto professor.

“Calma, criminosos são sempre perigosos. Não devemos espreitá-los. Se se sentirem acuados poderão desaparecer. Vamos deixá-los à vontade”.

O velório e o enterro de Angélica Cristina Pellegrini foram de dar dó a qualquer ser por mais insensível e indiferente que fosse.

A farta família Pellegrini derramava lágrimas de sangue e choravam mutuamente num gesto de solidariedade e dor conjunta.

Miguel observava de longe tudo aquilo.

Novamente, assim como no velório da mãe, não chorou. Mas sua dor era intensa. Estava mais uma vez anestesiado.

Douglas Sanoj, seu amigo e aliado, o acompanhava. Ramires José já havia partido à capital.

Em seu depoimento não acrescentou nada de novo aos fatos.

Disse palavras similares às ditas por Douglas Hernesto Sanoj.

Partira deixando os dois amigos naquela cidadela, agora triste e cabisbaixa.

Os dias que se passaram foram dias incertos para Miguel das Neves Alves.

A policia não descobria nada de novo e o povo em geral, havia se esquecido do ocorrido.

Era uma maneira que aquela população tinha desenvolvido para dar continuidade ao cotidiano tedioso que preferiam enfrentar.

Esqueciam as coisas ruins e viviam a trabalhar e a vaguear diante do calor escaldante.

Parecia notório que o povo não incorporava certos fatos que doíam em suas almas.

Preferiam esquecer. Não comentavam mais nada, de forma que, parecia que tudo aquilo tinha sido um pesadelo e agora estavam acordados para mais um dia de labor, peleja e ócio, não necessariamente nessa ordem.

Miguel voltara a lecionar logo no dia seguinte a sua soltura.

Abatido e sem motivação sempre se lembrava de sua amada ao adentrar-se no colégio e na sala que Angélica se fazia aluna. Aquilo para ele era de um sofrimento imenso.

“Será que terei que carregar para sempre essa nefasta lembrança?”

Havia sobre ele certo receio e uma incerta dúvida da população hipócrita sobre se realmente era ele o criminoso.

Os professores, a diretora e alguns pais de alunos o olhavam com olhar de reprovação e acusação.

Miguel sentia na pele essa repugnação social e se recolhia cada vez mais à bebida e aos livros.

Leu novamente “Cem anos de solidão” por duas vezes, releu “A Metamorfose”, “Pilatos” e “O Médico e o Monstro” de uma forma como nunca os havia lido, com o coração ferido.

O “Poema de sete faces” e “Mãos dadas” de Drummond voltaram a frequentar sua mente, agora abatida por outra intempérie de mau agouro.

Na escola não conseguia expressar enfaticamente como outrora o fazia.

Suas aulas se tornaram tépidas e sem brilho. Bebia cerveja fria em doses cavalares praticamente todas as noites.

Acompanhava-as com vinho tinto e cachaça de engenho.

Todavia, o que Miguel das Neves Alves não sabia era que o crime estava para ser esclarecido brevemente, não pela investigação policial, mas, pela consciência dos executores.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 04/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1681681
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