XXV - Irei vê-la, após o almoço

O fato que se sucedeu naquela noite foi para toda a pequena população da Cidade dos Miguéis algo avassalador e de imenso sofrimento.

A mãe de Angélica havia ido à casa do professor Miguel assim que percebera a ausência da filha para o jantar e em seguida para repousar em mais uma noite tranqüila de sono profundo.

Não a encontrou, obviamente. Não encontrou ninguém que pudesse atendê-la e decifrar o desaparecimento da pequena jovem.

A mãe, impacientemente furiosa com o sumiço da filha, dirigira-se a todos os lugares freqüentados pelo simpático casal, mas não obtera respostas sobre o paradeiro de ambos.

Como não se percebia pelo veículo do professor Miguel, imaginou de súbito pensamento neurótico, típico de mães apavoradas que sentem o eterno breve desaparecimento de suas crias, que haviam ido viajar sem aprovação nem consentimento seu.

“Mas que desaforo”, confabulou em voz alta e com a garganta dolorida pela saliva áspera que acabara de engolir enquanto voltava a passos largos para sua casa na vila dos cachorros.

Ninguém dormiu naquela casa. Todos na ansiosa expectativa da volta de Angélica Cristina Pellegrini.

“Nossa filha nunca fez esse tipo de ato irresponsável!”

“Namorar pessoas mais velhas é perder as rédeas da vida”.

“O professor Miguel terá que se explicar direitinho!”.

“Angélica ficará de castigo por um mês!”.

O dia se fez claro.

Os pássaros cantarolavam e se banhavam na fonte central, em cima dos galhos das sete-copas espalhadas pelas calçadas da cidadela, rolinhas e pombinhas disputavam insetos com os pardais e o calor aumentava gradativamente; o cotidiano da cidadela preparava-se para a rotina de mais um escaldante dia.

Os pais de Angélica foram ter na escola com a diretora sobre as atitudes surpreendentes de sua filha na noite anterior e, logo de início ao âmbito escolar se viram frente a frente com o professor Miguel das Neves Alves, suas cardenetas de chamada, seu estojo com várias cores de gises, uma garrafa d’água mineral e um apagador gasto pelo tempo.

Os olhos do professor, fundos por natureza, se faziam jazigo pútrido tamanha suas olheiras estampadas na sua cara atordoada pela ressaca que o abatera naquela bela manhã ardorosamente volátil.

“Onde está Angélica, professor Miguel?”

“Nesse momento, provavelmente entrando em sua sala de aula”, disse o professor querendo esboçar um leve sorriso opaco.

“Vocês passaram a noite juntos?”

“Obviamente não, minha senhora. Tenho muito respeito pela sua família e acho isso um ato de imensa irresponsabilidade para um casal que ainda não uniu matrimônio”.

“Nunca desonrarei a família Pellegrini. Tenho intenção de casar com sua filha, mas ainda é prematuro tomar essa decisão. Vamos deixar que o tempo dite os fatos”.

“Mas, porque interroga-me sobre a noite anterior? Não estive com Angélica nem por um minuto sequer. Tivemos uma leve discussão no começo da noite, todavia parti para o rancho de Ramires enquanto Angélica se dirigia rumo à sua casa”.

“Então devemos correr! Temo pela vida de minha filha! Ela não dormiu em casa”, disse a gritar sussurrantemente a mãe olhando estática para o professor Miguel das Neves Alves.

“Não posso imaginar que minha amada tenha cometido tal irresponsabilidade por dormir fora de casa sem o consentimento de vocês, mas fiquem calmos!” Miguel também estava nervoso e temeroso com essa notícia estranhamente surpreendente.

“Então professor ajude-nos a procurá-la agora! Vamos!”

Saíram naquele momento sem um rumo certo vagando pelas ruas da cidadela a procura da bela jovem desaparecida.

Não encontraram nada. Às dez e vinte da manhã estavam atordoados e levemente desanimados.

Tinham ido a todas as casas das supostas amigas e colegas de Angélica, nas casas dos colegas de sala e não encontravam respostas positivas sobre o paradeiro da pequena. Miguel perguntava nas salas de aula do colégio sobre Angélica, mas ninguém a tinha visto.

Os relógios marcavam onze e quarenta e sete, quando um pescador que tinha passado toda a manhã a pescar corvina num riacho sinuoso, de águas bravas e barrancos arenosos, que atravessava perpendicularmente ao grande rio e delimitava o perímetro urbano da Cidade dos Miguéis e, quando estava a voltar ao seu veículo ouviu aquele zunido retumbante típico de moscas varejeiras que sobrevoam carniças e ateve-se em olhar à frente do barranco de areia onde se fazia descansar uma enorme touceira de capim.

Encontrou um corpo todo esquartejado, arroxeado, extremamente violentado sabe-se lá por qual monstro sinistro e diabólico.

A cena era de impacto terrível mesmo para os olhos do médico legista mais experiente.

O corpo mostrava-se frágil, todavia, marcas de espancamento e cortes profundos na carne se faziam presentes na sua totalidade.

Não havia uma parte sequer que não mostrava sinais de agressão intensa e duradoura.

O cheiro peculiar de corpos em decomposição começava a se fazer notório pelo ar umedecido daquela beira de rio.

O pescador então, depois de alguns minutos de inanição e pavor, tomou apressadamente rumo à cidade, estava amedrontado por tamanha aberração e violência. Nunca imaginava observar tal cena funesta.

“Era de dar dó e comoção”, enfatizava o homem durante toda a sua existência posterior ao fato. Seus olhos castanhos claros nunca se esqueceram daquela cena.

Chegando a delegacia não pronunciava palavras coerentemente para se fazer entender. Tremia e gesticulava intensamente, de modo que tiveram que ministrar dois copos de água com açúcar para que se acalmasse e explicasse melhor o que havia presenciado.

Quando os policiais visualizaram o local onde jazia o corpo da outrora bela e singela jovem foi um espanto geral.

Os policiais que foram designados a irem onde estava a substância orgânica com ausência de vivacidade e marcas de violência espalhadas por toda sua extensão ficaram estupefatos e tenebrosos.

“Há entre nós um terrível assassino”.

“Esse caso se parece com o que li no jornal da semana passada. O assassino ataca, violenta e mata belas jovens”.

“Mas isso é no sul do país. Estamos a milhares de quilômetros desse fato”, argumentavam outros policiais que presenciavam a cena e o comentário.

“Pode ser alguém tentando copiá-lo”.

“Copiar quem?”

“O sulista assassino é claro!”

“Mas porque fariam isso?”

“Veja só, que bela criatura. Mesmo toda dilacerada e com deformidades no crânio percebe-se que era muito bela e muito jovem também”.

“Será que era virgem?”

“O que isso importa agora. Vamos chamar a perícia!”

A notícia de que um corpo fora encontrado próximo ao riacho, onde há muito tempo atrás também morrera Felizardo Jacinto, causou pânico e lamentos por toda a cidadela.

Miguel ficara sabendo da notícia por meio de Douglas Hernesto Sanoj:

“Estava no balcão do botequim tomando água tônica quando chegaram com essa nefasta notícia. Diziam ser uma bela e pequena jovem dos cabelos avermelhados e pele clara!”.

O professor de história da Cidade dos Miguéis não se deteve aos prantos.

Não tinha precisão dos fatos, mas possuía uma certeza mórbida de que o corpo em questão era o de sua amada.

Espantado, Douglas Hernesto Sanoj, tentava consolar o amigo dizendo para ter calma e que não era Angélica a vítima do fatídico crime.

Mas Miguel, com uma vivência cheia de infortúnios e desolações, pressentia mais uma tragédia em sua vida.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 06/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1684974
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