XXIV - Nas profundezas de sua mente insana

O professor Miguel das Neves Alves lecionava dia após dia no colégio, e inevitavelmente ficava, a saber, do que ocorria no cotidiano escolar.

Descobria passivamente quando Angélica era barrada pelo pequeno ser ciumento, mas achava que ainda não deveria intervir.

Afinal, ela, numa necessidade de auto-afirmação e maturidade deveria por um ponto final naquele relacionamento infanto-juvenil.

Angélica, quando interrogada por Miguel, dizia: “está tudo sob controle, meu querido”, de modo que não causava pensamentos transtornantes na mente do professor atarefado demais com sua profissão.

A diretora e os professores moralistas se renderam aos argumentos do professor que dizia amar intensamente aquela singela jovem.

Tinha encontrado sua felicidade e não se deteria a tal paixão.

Possuía como trunfo a aceitação da família Pellegrini, de modo que, não seria a rude diretora que iria ditar regras de comportamento aos cidadãos locais.

Miguel das Neves Alves encontrava-se frequentemente com seus amigos Douglas Hernesto Sanoj e Ramires José de Freitas e, numa noite ensolarada onde a lua clareava como um astro todo o baixo relevo da cidadela, os três se encontraram na propriedade de Ramires para mais uma sessão de bebedeira e debate filosofal.

Pouco antes desse encontro, Miguel e Angélica tiveram uma pequena discussão em frente o portão da residência do professor.

Angélica argumentava enfática que não aprovava os encontros dos três amigos no rancho de Ramires.

“Vocês se reúnem para beber e jogar conversa fora! Isso tira sua saúde e o faz sofrer. Não quero te ver se acabando com a bebida. Não aceito essa idéia, e pode achar e dizer o que quiser que continuo não aprovando!”

“Calma minha querida, está tudo bem”.

“Voltarei cedo para casa e não beberei muito”.

“Outra coisa Angélica, não ficamos jogando conversa fora. Meus amigos são cultos, conversamos diversos assuntos e muito do que sei e aprendi devo a eles!”

“Não nasci no dia em que começamos a nos relacionar, Angélica. Tenho um passado, hábitos, gostos e tento preservá-los. Não me diga o que tenho que fazer!”.

“Quer dizer que prefere seus amigos a ficar comigo? Também sei conversar e tenho muitas coisas a aprender. Por que não me ensina filosofia então?”

“As coisas não são bem assim, menina! Claro que vou ensiná-la tudo o que sei, mas hoje reunirei com meus amigos. Essa reunião já estava previamente marcada e não irei me ausentar em última hora, não é do meu feitio abandonar compromissos”.

“Esse seu ciúme estranho não a levará a nada”, ressaltou o professor levemente furioso com tanta implicância, ciúmes e mimo.

“Se você for, não me procure mais!” Nesse momento Angélica estava com uma tonalidade vermelha na face expressando certa revolta no olhar.

“Não seja tola minha querida. Não há motivo para tanta revolta!”

“Sei que vocês se encontram com outras mulheres no rancho de Ramires. A cidade toda diz isso!”

“Isso é fofoca sem fundamento e sem provas. Não passa de tremenda mentira. Não trairei você nunca, minha querida!”

“Não me chame de querida e se for não me procure mais!”

“Irei. Conversaremos amanhã. Fique calma. Vá para casa. Relaxe. Durma. Ore. Não se preocupe comigo. Há dias marcamos essa reunião. Temos coisas relevantes para discutir. Não posso deixar de ir ao rancho nessa noite”.

“Tudo bem professor! Se prefere seus amigos à minha companhia, então não temos mais nada a conversar!”

Virou as costas e partiu em direção à sua casa, a pequena e enciumadamente furiosa, Angélica Cristina Pellegrini.

Miguel não a chamou. Deixou-a partir.

Ficou estático observando sua diminuição no horizonte das largas ruas daquele setor da Cidade dos Miguéis.

Quando deu por si percebeu alguns transeuntes o observando discretamente.

Havia baixos comentários e olhares atravessados em velocidade.

Também havia um pequeno cachorro ao seu lado sentado sobre as patas traseiras o olhando fixamente com a língua de fora e a balançar a cauda peluda.

“Namorar menina nova da nisso”, confabulou em alta e ressonante voz olhando para o cão.

“Crise de ciúmes era só o que me faltava agora”.

O professor Miguel, por um segundo quase desistira da idéia de se reunir com seus amigos em prol de sua amada, todavia se fizesse isso cederia aos caprichos da pequena enciumada e perderia terreno em sua estimada liberdade de ir e vir.

Chegando ao rancho foi logo cuspindo verborragia.

Seus amigos sorriram e Ramires, impávido, iniciou a abertura do garrafão de vinho com um saca rolhas francês de grande apreço que possuía pequena ferrugem na lateral do cabo inox, justamente na parte azul da pequena bandeirinha francesa.

Miguel estava completamente envolvido com literatura brasileira depois de adquirir vários livros de João Ubaldo Ribeiro, uma edição antiga quase se desintegrando de “Pilatos” de Carlos Heitor Cony, uma coleção capa-dura vermelha de Jorge Amado e uma antologia de Carlos Drummond de Andrade, além de outra antologia de Vinícius de Moraes; e argumentava enfático sobre a contribuição desses mestres no cenário literário mundial, sobretudo Cony e Jorge Amado.

O professor de História havia lido várias narrativas de “Ubaldão”, como ele se referia, e apaixonara-se pelo modo de escrever e narrar seus contos, romances e casos. Conhecera Pilatos por intermédio de Douglas e, desde então, tornara-se grande admirador de Carlos Heitor Cony.

Sempre que tinha oportunidade, indicava esse belo livro a alguém.

Ramires José havia se aprofundado em antropologia e Douglas Hernesto Sanoj em gnose.

Os três mais uma vez, embebedaram-se intensamente com grandes quantidades de vinho tinto servidos à temperatura ambiente e muitas cervejas frias.

Deram inicio a sessões de vômitos quando o relógio marcava duas e sete da madrugada.

Duelavam-se a três num diálogo embasado em ciência e empirismo, totalmente informalizado e sem necessidade de conclusão.

Nesse momento, Ramires levantou seu braço, como se quisesse ser ouvido e fez-se um silêncio na sala onde estavam a beber ferozmente.

“Estou de partida, meus caros amigos”.

“Voltarei a capital pela tarde. Será, por enquanto, nossa última algazarra literária. Fiquei muito tempo nesse lugar e já não me sinto feliz. Fora vocês, grandes companheiros, não tenho reciprocidade cordial das pessoas dessa vila estagnada no tempo. Sou incompreendido sem ser tudo isso. Sou normal e simples. Se tenho posses e bens foi por herança. Irei respirar novos ares.”

“Se queres mesmo partir, parta. Faça o que tu almejas. É direito seu buscar sua felicidade”, interferiu Douglas Sanoj sentando na poltrona à frente dos dois amigos.

“Lembra quando debatemos por duas semanas O Livre Arbítrio”, reviveu o ébrio.

“Liberdade física, liberdade intelectual e liberdade moral, Schopenhauer instiga demais”, ressaltou Ramires.

“Até que ponto toda essa liberdade é benéfica foi o pilar mestre de nossos debates, me recordo muito bem”, disse Miguel.

“Foi o período em que mais bebemos vinho, se não me engano”.

“Não se engane Douglas, sua mente não falha para esses relatos”.

“Agora me veio a mente uma passagem de Isaias, no capítulo trinta e dois”, disse Ramires surpreendendo aos outros dois, pois esse homem como dito anteriormente não citava a Bíblia nunca.

Continuou: “Ao louco nunca mais se chamará nobre e do fraudulento jamais se dirá que é magnânimo”.

“O nobre projeta coisas nobres e na sua nobreza perseverará”.

“Somos nobres amigos e sempre seremos”, Miguel gritara essa frase.

“Vamos brindar a liberdade consciente de ir e vir então”, disse Ramires enchendo e erguendo seu copo ao alto.

“Um brinde a liberdade”, disseram praticamente simultâneos Douglas e Miguel também a levantarem seus corpos e copos cheios de bebida.

Miguel olhando assustado para seu relógio de pulso análogo despediu-se do grande companheiro e partiu ziguezagueando rumo à sua casa, todavia não chegou ao ponto final para repousar e se preparar para mais um dia extenuante de labuta instrutiva.

Dormiu ao léu, dentro do veículo com os vidros abertos e os faróis acesos próximo a entrada da ponte que atravessava o grande rio.

Tinha ido em direção errada ao seu local de domicílio sem perceber do fato devido à tamanha embriaguez e, portanto, não o viram Douglas nem Ramires retornando a suas respectivas casas.

Quando acordou, na manhã seguinte, ao sentir os primeiros raios solares e o calor aumentando gradativamente no interior de seu veículo, sentindo uma sequidão enorme em sua boca fétida, rumou às pressas para cidadela para se banhar e exercer seu ofício diário.

Não encontrou Angélica na escola.

Preocupou-se momentaneamente com sua ausência, mas não tinha cabeça para pensar. Estava atordoado pela ressaca fulminante que o abatera naquela manhã.

“Irei vê-la, após o almoço”, determinou consciente.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 06/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1684978
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