XIX - Boa noite, caro amigo

Naquela noite excessivamente ardente, chegando em casa, o velho e longânime padre solicitou junto ao seu secretário, o pequeno e já putrefato anão zeloso, que lhe preparasse uma generosa taça de vinho tinto seco.

O solícito, então, o atendeu prontamente e, Abelardo Mota, o padre, deu inicio a sua rotineira degustação da substância alcoólica.

O que ocorreu depois do inicio do prazeroso hábito do padre patriarca dos Miguéis, foi algo sutilmente deplorável para indivíduos que chegam a alcançar longa idade e vivência sem excessos mundanos.

Começara a sentir náuseas pouco depois das vinte e três horas e alguns minutos. Queixara-se, num primeiro momento superficialmente, ao seu vassalo cortês, mas dores estomacais terríveis lhe acometeram de tal maneira que, em pouco desenrolar do ponteiro maior, já rolava pelo chão rústico de sua residência acompanhado visivelmente pelo pequeno ser que, não sabia o que fazer muito menos como intervir de maneira eficaz para o anestesiamento de seu senhor que gemia e se contorcia como um urso pardo com sua pata dianteira amputada por alguma armadilha de caçadores que cobiçam-lhe insanamente sua pele nobre e de grande valia.

O fato, narrado às autoridades na madrugada daquela tórrida e angustiante noite, por parte do pequenez singular, gerava contrações musculares na face de quem ouvia e se angustiava, como um modo de complacência, respeito e resignação com a figura do padre que praticamente fundara aquele parco município e agora, jazia contorcido, acometido de dores que levaram o velho ao outro lado da vida, ao encontro com o desconhecido, face a face com o inefável.

Enfim, o velório. Sequencialmente o enterro.

Todos exageradamente todos os habitantes do local passaram em frente ao caixão do morto eclesiástico, se benziam com aquele sinal peculiar, o olhavam fixamente, suspiravam e saíam sem lhe dar as costas, como um gesto de respeito ao corpo gélido, horizontalmente posicionado dentro de um enorme caixão de madeira negra, envolto de flores e honrarias.

O fato inusitado que não posso deixar de salientar nessa narrativa é que, três dias posteriores ao óbito do velho padre, seu serviçal de confiança, o pequeno e franzino anão veio a falecer ainda na residência paroquial, quando arrumava os pertences de seu senhor sacerdotal e os seus próprios, pois iria deixar aquele local carregado de lembranças e recordações de uma vida inteira a serviço do pároco Abelardo Mota.

Foi como se laços orgânicos invisíveis os unissem nessa vida e por meio de um só coração e órgãos vitais conjuntos, ambos funcionavam sincronicamente e se dependiam para a auto-sobrevivência mútua e recíproca.

“Faleceu de tristeza”, diziam alguns transeuntes que visualizavam o caixão de pequenas proporções. “Nunca participei de velório de anão”, diziam outros. Os antigos do local argumentavam que aquilo era fato inusitado, pois, ”anões não morrem”, de modo que aquele funeral se tornou um evento em toda a cidadela.

Todos os moradores do local queriam presenciar aquele ato fúnebre.

Muitos flashes foram produzidos. Queriam registrar o momento para toda a posteridade da história da Cidade dos Miguéis.

Seu nome era Neander Tales.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 08/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1688281
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