XVII - Tenho que me concentrar na aula

Os dias que se passaram sucederam três fatos altamente relevantes que não podemos deixar de explanar nas linhas que se seguem.

O primeiro fato foi para Miguel de extrema surpresa, porém de resignação patente.

Miguel percebia diariamente que um pequeno caroço, uma protuberância gradativa crescia bem no meio de suas costas.

Como não visualizava freqüentemente seu dorso, tinha visualização diária de seu tórax nu ao banhar-se, ou quando estava em sua residência retirava sua camisa para amenizar o calor, ou quando passava as tardes ensolaradas banhando-se na piscina de seu amigo Ramires, porém as costas não visualizava com a mesma freqüência.

Percebia apenas ao tatear, que o caroço aumentava em significância.

Imaginou ser uma invaginação sebácea dessas que acometem as pessoas na pós-juventude recheada de testosterona, todavia não cuidava, não zelava pelo pequeno tumor que se instalara na sua região centro-dorsal.

Alertado por Ramires José e Douglas Hernesto Sanoj, após breve comentário, resolveu procurar um médico dermatologista para análise da coisa.

Após averiguar Miguel, o tal médico, veio a sentença: um tumorzinho maligno acometia Miguel, passível de câncer e agora refém de mais uma intempérie patológica.

“Temos que operar urgentemente para extrair esse sebo endurecido”, disse o médico a Miguel, agora em estado perplexo e com vontade de chorar copiosamente.

Mas não chorou, ficou apenas anestesiado em pensamentos fúteis e irrelevantes para o momento.

Os dias posteriores ao fato foram para o professor de grande reflexão e tristeza.

Estava apaixonado, tinha encontrado sua suposta mulher com quem queria ter longevidade e muitos filhos e agora poderia estar com os dias contados.

Um tumor maligno era só o que faltava em seu currículo patológico extenso.

A fase pré-cirúrgica foi árdua e demasiadamente lenta devido a ansiedade que travava os ponteiros do relógio e retinha as folhinhas do calendário.

Criava-se uma enorme expectativa por parte dos amigos íntimos, dos colegas de bar que o acompanhavam cotidianamente, dos alunos e dos professores do colégio (não havia dito a ninguém sobre o fato, mas chegou um momento em que toda a pequena cidadela tinha conhecimento da intervenção que ocorreria em breve).

Sua mãe, como não podia deixar de ser, orava e dava forças ao pertinente filho doentio.

Passou por procedimento cirúrgico e iniciou um pequeno período de convalescença e tratamento quimioterápico de curta duração.

Barreiras era a cidade na qual Miguel das Neves Alves procedeu a cirurgia contra o possível câncer.

Havia lá um hospital específico para esse tipo de patologia e ficava bem próxima a cidadela que nosso enfermo habitava desde a tenra infância.

Teve contato com outras pessoas acometidas do mal avassalador e, a partir desse fato encarou com mais coragem o desafio de viver.

Viu crianças carecas sob tratamento intensivo, idosos sem próstata, mulheres com singularidade de seios, e por vezes, via pela última vez a transitar pelos corredores, algum ser que nem teve oportunidade de conhecer direito.

Mais uma vez fez profundas reflexões sobre a vida humana, a fragilidade dos corpos, e nesse período estudou a fundo a ciência da teratologia e da memética.

Talvez buscasse explicação científica para tantos acometimentos patológicos.

“Poderia ser congênito”, confabulava só, na imensidão de seu quarto quente e abafado, com leve debilidade física visível a qualquer ser que o enxergasse naquele período peculiar.

Estava amarelado e com olhos profundamente fundos.

Ficou tão preocupado com a recuperação que se manifestou em seu magro, porém largo tórax, uma grandiosa herpes cutânea.

O médico que o assistia disse nunca ter presenciado tamanha dermatose. Era como se um ataque de herpes-vírus gerasse em Miguel erupções vesiculosas de proporções gigantescas.

A área afetada iniciava-se abaixo do pescoço, na linha que divide os músculos peitorais superiores dos deltóides claviculares e descia largamente até a região pubiana.

O médico, meticulosamente num procedimento curioso, riscou todo o perímetro da região afetada, com um contorno esferográfico rabiscado por caneta porosa comum, dessas encontradas em livrarias, dizendo que esse procedimento inibiria o espalhamento do herpes-vírus e não lhe acometeria na região genital.

Foi por pouco. O procedimento médico foi eficaz e a dermatose não se propagou além da linha circular num raio que ia do inicio do peito abaixo da clavícula e descia até uns dez centímetros abaixo do umbigo do professor de História geral.

Miguel tomava dois tipos de medicamento, um para cicatrização cirúrgica e outro para retenção do herpes torácico.

Em seu período de convalescença relembrou da infância, quando era acometido das mais particulares patologias, lembrou-se da catapora avassaladora, relembrou da infecção óssea, dos vários quebramentos ósseos e das crises de asma e bronquite.

Sentiu-se o ser mais frágil e ao mesmo tempo mais insistente em sobreviver que nasceu nesse problemático e enfadado planeta.

Um fato extremamente curioso foi que, mesmo sob tratamento quimioterápico moderado, o nosso professor não perdeu um fio de cabelo sequer.

Tornara-se então, objeto de estudo da classe médica local, que até então, nunca havia presenciado inusitada ocorrência.

Seus negros, espessos e lisos cabelos estavam intactos e pareciam até mais brilhantes.

Possuía uma oleosidade particular que deixava os fios volumosos e fáceis de pentear.

Nada que caracterizasse relevância sobre a não-queda de cabelos foi detectada pelos médicos responsáveis por tal averiguação.

O término do estudo, então, se fez necessário por falta de evidências científicas e verba para continuidade das pesquisas.

Após três semanas de repouso absoluto e tratamento intensivo, seu medicamento para a cicatrização cirúrgica estava na iminência de acabar, e solicitando junto a sua mãe que cuidava experientemente dele, pediu-lhe que buscasse na farmácia próxima, novo remédio.

Foi nesse dia que Miguel das Neves Alves sofreu um dos maiores abalos de sua vida.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 09/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1690080
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