Ampulheta escarlate ou uma escada para o futuro

Numa noite de chuva fina, dois carros estão emparelhados, esperando, sob a luz vermelha fragmentada nas inúmeras gotas suspensas nos vidros, que o sinal de trânsito lhes permita seguir.

Os dois motoristas têm pressa e o sinal parece sugar toda sua atenção; mas num instante ambos deixam cair os antolhos da ansiedade e olham para o lado. Os olhares se cruzam e, depois de um breve momento, se reconhecem; eles abaixam os vidros e trocam saudações - são amigos que não se encontravam há tempos. A ampulheta escarlate marca o tempo, brevíssimo, que eles têm para conversar. O sinal fechado é uma parada obrigatória; uma pequena interrupção que lhes é imposta.

Queremos seguir, precisamos seguir, somos obrigados a seguir. Aí está a diferença: a rapidez é excitante; no entanto, quando é uma imposição, torna-se cansativa, principalmente se não temos idéia do objetivo da corrida da qual participamos.

É como se houvesse - e creio que de fato há - uma perseguição: nós perseguimos algo inescrutável mas imprescindível, ao mesmo tempo em que somos vítimas de uma perseguição, algo nos empurra adiante; seguimos correndo, sob pena de sermos esmagados. E “enquanto corremos pela estrada, parece que nossas sombras são maiores que nossas almas.”[1]

A imagem de um rio caudaloso, que carrega em sua corrente tudo que ali cai, representa esse fluxo no qual estamos presos. E não conseguimos ver sequer as margens. Outra imagem é a de que somos pedras rolando montanha abaixo; nada é capaz de nos fazer parar: nosso peso, a gravidade de nossas vidas, nos impele para o abismo.[2]

O presente, nesse contexto, é fugaz, enfadonho e instrumental - na medida em que não tem nenhum valor em si mesmo, mas apenas como degrau para o porvir -; é somente um pequeno e imperceptível degrau na escada para o futuro.

Encontramo-nos no labirinto do palácio do Mago Atlas,[3] que, de uma hora para outra, se dissolve no nada, transformando-se num redemoinho de vazio. Atlas, mago ilusionista, cria esta armadilha, para atrair os cavaleiros que procuram algo; ele ilude suas vítimas com visões, nas quais os objetos desejados são roubados e levados para o castelo. Desta forma, os cavaleiros caem nesta armadilha ao perseguirem algum bem que aparentemente lhes teria sido furtado. “O desejo é uma corrida rumo ao nada, o encantamento de Atlas concentra toda as paixões insatisfeitas no interior de um labirinto (...).” [4] Sinto-me neste labirinto, buscando a realização de um desejo dentro da ilusão, ou seja, dentro deste palácio que se encontra deserto daquilo que almejo.

Aqueles amigos que se encontraram debaixo do sinal estão indo, “correndo para pegar” um lugar no futuro, que é algo inatingível, pois, ao chegar lá, ele será presente e, portanto, mais uma vez, será um pequeno degrau da escada infinita, na qual estamos subindo com pressa, para chegar ao futuro; no entanto, só existe o presente, que é fugaz e consiste neste degrau, no qual mal colocamos nossos pés, vislumbrando sempre o que está por vir, não o que há agora. E assim seguimos; assim temos que seguir. Parar agora, ainda que por um bom motivo, nos angustia. Estamos condenados a nos mover incessantemente; parar é como morrer.

Subimos esta escada que compramos para chegar ao céu (stairway to heaven), [5] ao “sono tranqüilo”, a algum lugar onde poderemos parar finalmente. Mas como podemos sacrificar o presente por algo que não conhecemos? Acho que não temos tempo sequer para refletir sobre isso: as margens estão distantes de nós, não há onde nos agarrar, precisamos seguir, rapidamente. O sinal vai abrir. Há quanto tempo estamos correndo sem olharmos para onde pisamos. Pois é, quanto tempo!

É isto que “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, representa para mim. Aí está o diálogo sobre o tempo e a fluidez das relações:

– Olá! Como vai?

– Eu vou indo. E você, tudo bem?

– Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E

você?

– Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranqüilo...

Quem sabe?

– Quanto tempo!

– Pois é, quanto tempo!

– Me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios!

– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!

– Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí!

– Pra semana, prometo, talvez nos vejamos...Quem sabe?– Quanto tempo!

– Pois é...quanto tempo!

– Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das

ruas...

– Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!

– Por favor, telefone - Eu preciso beber alguma coisa,

rapidamente...

– Pra semana...

– O sinal...

– Eu procuro você...

– Vai abrir, vai abrir...

– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...

– Por favor, não esqueça, não esqueça...

– Adeus!

– Adeus!

– Adeus!

Ater-me-ei à análise da letra, mas não posso deixar de ressaltar a beleza da melodia, que, para mim, transmite todo o caráter inelutável do tempo. Prometo que talvez eu faça uma leitura semiótica de “sinal fechado”; quem sabe?

A expressão “eu vou indo” representa, ao mesmo tempo, o estado e a maneira pela qual as personagens seguem adiante: “eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro”;“eu vou indo em busca de um sono tranqüilo.” Observem que, em vez de responderem que estão bem, as personagens dizem que estão indo e apontam o futuro como objetivo. Mesmo ao afirmar que deseja um “sono tranqüilo”, podemos perceber que se trata de um anseio quanto a algo que se pretende para o futuro. Assim, nas duas respostas, fica clara a hegemonia do futuro em detrimento do presente.

Em seguida, eles constatam quanto tempo passou até se encontrarem agora, casualmente; e essa constatação se repete mais uma vez no diálogo, servindo como uma espécie de refrão. Após, eles justificam a ausência, reafirmando a pressa, a inevitabilidade da rapidez em que vivem: “me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios! Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!” E falam sobre se encontrar algum dia, num futuro sem qualquer definição, numa data a ser fixada.

E aí se insere a frase que demonstra toda a fluidez das relações: “pra semana, prometo, talvez nos vejamos... Quem sabe?”. O uso do verbo “prometer” seguido de “talvez” e “quem sabe?” demonstra o paradoxo de quem assevera algo e o refuta ao mesmo tempo.

Logo após, ambos afirmam que tinham algo a dizer, mas o tempo e a pressa fizeram as palavras sumir “na poeira das ruas” ou fugir à lembrança. E mais uma vez eles falam no encontro que um dia marcarão no futuro - quem sabe?

Os últimos grãos de areia da ampulheta já estão caindo: a luz vermelha que lhes concedeu esta fugaz intermitência está quase se tornando verde - eles precisarão seguir, pois o sinal “vai abrir, vai abrir.” O esquecimento prevalecerá; a dúvida vencerá as promessas; o presente sucumbirá diante do futuro. Vamos, corra, o sinal vai abrir, cumpra sua sentença: vá correndo pegar seu lugar no futuro; não perca tempo com o presente.

Notas:

[1] V. Stairway to heaven (Led Zeppelin). “And as we wind on down the road / Our shadows taller than our soul.”

[2] V. Stairway to heaven (Led Zeppelin). “When all are one and one is all / To be a rock and not to roll.”

[3] Ariosto. Orlando Furioso.

[4] CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos; tradução Nilson Moulin – S. Paulo: Companhia das Letras, 2007. Pág. 73/74.

[5] V. Stairway to heaven, Led Zeppelin. “There's a lady who's sure all that glitters is gold / And she's buying a stairway to heaven.”

Texto publicado na 2ª edição da Revista Leitura & Crítica (Páginas 17 e 18).