O PODER ABSOLUTO: Cap. 5 - Ética e Poder em Beatriz

Enquanto Samoel saboreava o café preparado por Maria, chega à cozinha sua esposa Beatriz. Sua presença inunda o ambiente em aroma e beleza triunfante.

Beatriz é uma linda mulher de olhos azuis e cabelos cacheados. Dotada de uma energia contagiante e voluntariosa, vem de uma família tradicional e abastada. Recebeu uma educação católica extremamente ortodoxa, e por isso costuma freqüentar sua igreja com regularidade. Mulher culta e viajada, Beatriz é professora de Literatura. Ambiciosa, almeja ser a próxima diretora da escola onde trabalha, e por isso, vive ocupada entre as aulas que têm de preparar, leituras e sua campanha política de indicação à diretoria.

Beatriz não tolera as atividades do marido Samoel. Chega mesmo a escandalizar-se com o dinheiro que o marido ganha, pelo menos com o que consegue visualizar. Considera um ultraje o seu salário de professora do Estado comparado com os ganhos que o marido lhe permite saber. Mesmo que ela seja eleita diretora, jamais conseguirá ganhar o mesmo que seu marido ganha em seus negócios, para ela escusos. Para uma mulher como Beatriz, seu marido Samoel ganha muito porque se aproveita da fragilidade das pessoas de quem compra suas mercadorias. Explora as pessoas quando estas estão vulneráveis à necessidade de dinheiro.

_De que outra forma lucraria tanto tendo tão pouco estudo?

Por seus princípios religiosos e a posição social e política de sua família, fazem não admitir que o marido lucre tanto, com o que para ela parece não ser fruto de um trabalho normal.

Beatriz não esconde sua contrariedade e critica abertamente Samoel diante de Maria, pois que, decididamente, não concorda com os meios de Samoel prover a família. Argumenta para ele voltar ao seu emprego anterior, onde mesmo ganhando menos, não necessitaria “submeter” as pessoas, como ela mesma diz:

“_Prefiro que você ganhe menos, a depois queimar no inferno por viver da miséria de fracassados”.

Além do mais, Beatriz considera as atividades de Samoel inadequadas sob o ponto de vista social. Chega a envergonhar-se perante as pessoas, pois para ela é uma atividade de “especuladores” e "desempregados", devido o fato do marido agir informalmente e não possuir uma empresa formalmente constituída. Mesmo que saiba de algumas empresas onde seu marido tem participação em papéis (ações), para ela Samoel não é um empresário e sim apenas um oportunista e sonegador de impostos.

Samoel ouve sua mulher em silêncio, tomando o cuidado de demonstrar que está atento, pois não quer discutir esse assunto na frente de Maria, além do que, Samoel sabe que seus argumentos serão ineficazes. Também sabe que sua mulher está ansiosa diante de suas ambições.

Aliás, ao observar as expressões de Maria, Samoel pensa e tem convicção que, se há alguém neste momento que poderia entender seus argumentos, esse alguém seria Maria! Para Samoel, até não seria difícil refutar os argumentos de Beatriz. Bastaria utilizar para tal, dos mesmos instrumentos “ameaçadores”, mas seu respeito moral para com a mulher, não lhe permite exercer essa atitude. Apesar de tudo, Samoel tem em Beatriz um equilibrio que lhe é necessáriamente essencial.

Além do mais, a beleza de Beatriz sempre o perturbara e suas diferenças de opiniões sempre se dissiparam quando os dois ficavam à sós. Refutá-la nesse momento iria de encontro à sua consciência, e para Samoel isso bastava... e por isso desconversa tolerando pacientemente as observações da mulher.

O que parece é que a ética e o poder de Samoel protegem Beatriz de Maria... e Maria de Beatriz! Samoel tem o domínio da tolerância.

Para Beatriz sua ética se situa em conceitos carregados de preconceitos e superstições, e interiormente, até mesmo sem que o saiba, teme que as atividades do marido desmereçam suas ambições, que vêm insufladas de vaidade e inveja.

Beatriz não consegue conter suas emoções, e daí seu sarcasmo que não permite tolerar a virtude oculta e a dimensão do bem a que tendem as atividades de Samoel. (...suprir as necessidades das pessoas)

Não considera em seu juízo a realização interior do marido, pois para ela Samoel “não sabe o que faz”, vive em pecado e por isso as conseqüências serão “terríveis”, para todos, inclusive para ela mesma.

Só que da forma como age, ela não consegue exercer nenhuma influencia sobre o marido, pois seus argumentos não exercem autoridade sobre os valores de Samoel. Entretanto, Samoel perturba-se diante da beleza de sua mulher.

Em seguida chegam os filhos Juca e Lila, que se sentam diante da mesa para tomar o café da manhã. Juca tem 18 anos, faz cursinho pré-vestibular. É bonito, alegre, brincalhão e tem muitos amigos. Juca quer ser um médico.

Lila não herdou os belos traços da mãe, porém tem um olhar expressivo cheio de azul, que lhe confere um mistério envolvente. Lila tem 22 anos e está quase concluindo sua graduação em Filosofia.

Os filhos chegam no exato momento em que Samoel está levantando da mesa do café e vêem o pai beijar a mãe carinhosamente.

Samoel se retira para o escritório, pois tem de olhar os classificados e dar alguns telefonemas. Juca e Lila percebem que Beatriz está um pouco agitada. Tomam o café rapidamente, Juca tem de ir para o cursinho e Lila está fazendo estágio como professora numa escola na periferia da cidade. Os jovens despedem-se e saem apressados.

Beatriz fica sozinha com Maria, que resolve fazer um pedido e daí surge o seguinte diálogo:

_ Dona Beatriz, queria pedir para a senhora me dispensar amanhã de manhã, pois tenho de ir numa reunião de pais na escola do meu filho Joãozinho.

_Oh Maria, o teu filho andou aprontando?

_Não é isso Dona Beatriz. É só uma reunião de pais.

_Mas isso não é motivo para eu te dispensar Maria;

_Desculpe Dona Beatriz, é que o Joãozinho me reclamou que eu nunca vou às reuniões de pais da escola. Fica chateado perante os colegas, sem falar na professora que vive comentando.

_Ora Maria, basta você explicar que não pode, pois tem seu emprego. Se fosse por problema de saúde, teu pedido seria justificado.

Maria pensa: _ "justificado"!?

Após negar o pedido de Maria, Beatriz se retira rapidamente, pois tem compromisso no cabeleireiro. Antes de sair para o cabeleireiro, ela passou no escritório para despedir-se do marido Samoel. Encontrou-o ocupado falando ao telefone. Para não atrapalhá-lo, enfiou a mão no bolso de seu casaco, retirou sua carteira e pegou algumas cédulas de dinheiro. Beijou-o na testa e retirou-se.

Após desligar o telefone, Samoel guardou a carteira em seu bolso e, fechando os olhos, ficou refletindo sobre o que a mulher lhe dissera à mesa do café:

“_Prefiro que você ganhe menos, a depois queimar no inferno por viver da miséria de fracassados”.

Beatriz tem o dia cheio de compromissos agendados, o que pareceu encobrir sua capacidade de refletir e avaliar o pedido de Maria. Ainda há de se considerar os hábitos que Beatriz desenvolveu através de sua vida pregressa, pois apesar do conhecimento que possui, os conceitos religiosos impregnados em sua gênese parecem provocar um conflito contraditório entre seu intelecto e seus valores morais, entre o que prega e o que faz, e isso parece que tende a obscurecer seu raciocínio. Com efeito, seus valores e emoções, a despeito de suas razões, não parecem produzir o bem, o que a leva a exercer um poder tirânico, que tende a um mal que lhe agita. Sua crítica exacerbada mostra uma insensibilidade de ponderar argumentos convincentes que a levem a atingir seus objetivos.

As emoções que a dominam, fazem parecer sua critica vazia.

Ora, parece que o poder que gera resultados consiste em manter-se no limite das médias. A justa medida nas palavras e no agir. Beatriz pareceu insensível à necessidade de Maria, e esse extremo de insensibilidade não lhe permitiu um juízo perfeito a respeito do pedido feito. Pensa que exerce o poder capital sobre Maria. Um poder que inclusive nem lhe pertence, pois o que ganha não é suficiente para pagar o salário de uma empregada como Maria. Na verdade, Beatriz apropria-se do poder capital do marido (que critica), pois que não tem controle nem sobre os seus próprios ganhos, daí tenta impor-se perante Maria, que necessita do emprego; Mas, mesmo essa dominação é transitória, pois Maria não aceita isto e pensa interiormente em procurar outro emprego. Logo, na verdade, até aqui o único poder de Beatriz é o da inconveniência, pois não convence nem o marido, e nem sua empregada.

Beatriz está muito agitada, pois após o cabeleireiro, tem de passar numa amiga cartomante, pois quer “antever” uma reunião que tem na escola com alguns companheiros de sua chapa de oposição à diretoria da escola. Ela ambiciona ser a próxima diretora da escola e é uma crítica contumaz de todo e qualquer poder constituído. Sendo uma fervorosa católica, revela-se mais uma contradição: A crítica a um poder constituído e a crença na vidência de uma cartomante.

Para ela, essas reuniões são extremamente cansativas, mas considera ser um ônus a ser enfrentado para atingir seus objetivos, pois que tem “grandes projetos” que pretende implantar após ser eleita, e para isto não medirá esforços.

Beatriz acredita que “os fins justificam os meios”, e obstinada, lançará mão de qualquer meio que atenda às suas finalidades.

Aqui mais uma contradição, que pode revelar a verdadeira raiz da censura aos meios de sustento do marido prover a família. Ora, Beatriz provém de uma família abastada, apaixonou-se por Samoel quando ele trabalhava de empregado do estado. Certa vez pediu ao pai que é um influente político, para ajudar Samoel a subir de cargo, mas como sabia que Samoel não aprovaria essa interferência, pediu segredo ao pai.

Na verdade ela nunca revelou ao marido este pedido secreto feito ao pai, nem quando Samoel comentou com ela sobre a promoção inesperada que recebera. Isso, pouco tempo antes de demitir-se. Parece que seu egocentrismo não lhe permite admitir a inveja que tem do próprio marido, que para ela parece não depender de nada e de ninguém. Assim Beatriz refugia-se em megalomanias e contradições, pois seus valores éticos não lhe permitem "ver" onde reside seu verdadeiro poder.

Beatriz ao pensar em seu pai, lembra que certamente ele ficará orgulhoso se ela for eleita para a diretoria da escola e com certeza “mexeria os pauzinhos”, se ela lhe pedisse para facilitar seus projetos. Aliás, este era um dos trunfos de Beatriz para obter sua indicação junto aos colegas, eles certamente não deixarão de indicá-la como candidata preferencial, até porque, como ela mesma diz:

“_Ninguém é mais qualificado do que eu. Tenho experiência, meu pai é influente, frequento a igreja regularmente. Sem contar que sou bonita e inteligente. Quem poderá ser melhor que eu?”

Beatriz pode até atingir seus objetivos. Mas os valores que amparam suas espectativas parecem dissimulados e vazios. Eles não são seus legitimamente. Beatriz apropria-se de poderes externos a ela mesma, e este pode ser o motivo de viver tão insegura, escrava de contradições e superstições equivocadas.

"Ela se escolheu como a melhor. Ela é a juíza de sí mesmo.

Ela é a mais bela e inteligente". Ninguém mais...

Enquanto Beatriz dirige, com a alma inconciente e a mente em turbilhão, Beatriz deixa escapar uma leve expressão de confiança e prazer:

Afinal, quando o dia passar e a noite chegar, aconteça o que acontecer, no aconchego de seu quarto de dormir, terá Samoel a seu lado!

... enquanto isso, Maria terminou de lavar a louça. Maria tomou uma decisão.