VI - De ressaca por três dias seguidos

Miguel já se aproximava dos vinte anos de idade.

Não possuía dinheiro para cursar uma universidade particular e então tentava vestibular para Faculdade de História na Universidade Estatal de Serras do Imperador.

Tinha deficiência em cálculos e química, mas essas não eram as matérias mais relevantes para quem cursará História da Humanidade, deste modo, tinha pouco receio em não ser aprovado.

Antes disso, trabalhou como ajudante de cartório, entregador de jornal, auxiliar de retratista, numa pequena oficina mecânica e atualmente exercia ajuda junto ao escritório do Dr. Douglas Hernesto Sanoj com a função de escriturário.

Estudava nos intervalos de trabalho, na hora do almoço e a noite no horário em que toda a cidadela estava em frente à televisão assistindo maciçamente ao capítulo da novela.

Passou. Foi admitido numa das melhores e mais completas faculdades de História do Estado.

A Universidade era próxima a Cidade dos Miguéis numa região serrana e de clima ameno. A cidade chamava-se Serras do Imperador.

Tinha esse nome porque no século XIX, o imperador vigente do Brasil Colônia, estando a passar por esse lugar já ao entardecer se viu exausto de uma longa viagem ao interior de seu país e determinou que a caravana parasse para pernoitarem.

Os cavalos beberam água de um riacho próximo ao acampamento e vários deles vieram a falecer.

Posteriormente descobriram que tal riacho possuía grande quantidade de moléculas de metais pesados, mercúrio e outros compostos em suas águas, e assim gerou a morte de vários cavalos e dois serviçais que se banharam pela manhã.

Até hoje o chamado “rio dos cavalos mortos” não sustenta vida, possui água mortal, não contém peixes, apenas corre em seu percurso e deságua sabe-se lá aonde.

Como não tinham cavalos necessários para partirem, instalaram-se por quase duas semanas na região a espera de novos cavalos. Quando o socorro real chegou praticamente uma vila havia nascido.

E esse local, de certo modo aprazível pelo clima, servia de parada para viajantes cansados, bandidos fugitivos, errantes que por ali passavam e paravam para roubar ou descansar ou as duas coisas não necessariamente nessa ordem, famílias de imigrantes provenientes do velho continente iniciaram-se no plantio de café e descobriu-se por acaso diamantes pequenos próximos ao leito do riacho dos cavalos mortos o que ocasionou uma verdadeira invasão de garimpeiros que vieram para lançar sortes.

Conseqüentemente instalou-se por ali uma gama enorme de prostitutas que armavam tendas para saciarem os garimpeiros e ficarem com parte dos diamantes encontrados. Rapidamente, estavam ricas, com prostíbulos sólidos e bem decorados.

Amantes de vários senhores, que também ganharam dinheiro com o garimpo, garimpeiros, comerciantes, artesãos e qualquer ser que pagasse o preço do breve prazer, essas prostitutas gozavam de prestígio e influência naquela região.

O solo arenoso e o clima tropical de altitude propiciaram enormes plantações de café e, deste modo o aumento de recursos em toda a região.

Grandes senhores do café surgiram e a cidade conta ainda com a produção e colheita de uma das maiores plantações cafeeiras da União Brasileira.

Atualmente Serras do Imperador tornara-se cidade universitária e com um pólo industrial gerador de produtos manufaturados. Não há mais diamantes.

Restaram prostitutas, bandidos e errantes, prósperos industriais e negociantes decadentes.

Devido à imigração européia, encontram-se concentrações maciças de mulheres de cabelos dourados e traços suaves, belas jovens altas, magras, formosas em essência e natureza o que acarreta aprazível sentimento e extremo prazer em visualizá-las, contemplá-las e mesmo deixar apaixonar-se por belas criaturas.

Qualquer ser desavisado que passe pelo local, quase sempre não mais quer retornar a origem, querem instalar-se definitivamente por aquelas plagas de fama notória por suas belas mulheres e clima suave.

E foi nessa cidade que Miguel das Neves Alves se dirigia diariamente.

Sua condução, um ônibus precário com pouco mais de trinta lugares, doado pela prefeitura da Cidade dos Miguéis para o transporte dos universitários locais, quebrava sempre no percurso, às vezes faltava freios, às vezes a roda travava.

Foi uma saga para se formar.

Nesse período, Miguel estudou a fundo a História Medieval e Moderna, conheceu o pensamento de Marx e se identificou muito com o socialismo.

Numa aula de economia contemporânea discutiu com seu professor, um velho metódico, porém de vanguarda, chamado Setúbal Oliveira Couto que dizia que o capitalismo era a solução para a recessão e todo tipo de crise mundial.

“Mas o socialismo é uma forma de capitalismo de estado coerente e necessária para sermos igualmente um planeta justo”, disse Miguel.

“Não há igualdade justa”, retrucou o velho professor.

“Todos somos iguais, mas uns são mais iguais que os outros! Já dizia George Orwell em seus escritos”, enfatizou o velho, justamente citando a Revolução dos Bichos, uma crítica de Orwell ao socialismo comunista soviético.

“Acredito piamente que um dia a distribuição de renda será igualitária para todos os cidadãos deste mísero país”, disse Miguel com os olhos umedecidos.

“Continue sonhando meu caro jovem aluno. Uma grande nação se faz por grandes sonhos e utopias. Se formos uma nação justa e igualitária, é porque então estamos caminhando para ela. Se estivermos em outra direção nunca chegaremos ao que realmente sonha para esse país. Poderemos sim, atingir outros objetivos e chegarmos a uma realidade mais nefasta, mais sedenta por dinheiro, mais selvagem no sentido capitalista, de modo que por fazer parte dela, também nos tornaremos capitalistas ferrenhos e perseguidores do mal que move o mundo”.

A faculdade tornou Miguel um reacionário resistente à evolução política do capitalismo norte americano que subsidia o mundo ocidental.

Achava que todo processo de mudança sempre gerava benefícios para a elite, para os governantes.

Mudavam a política somente para satisfação pessoal, para interesses próprios e inerentes aos demais cidadãos.

“Os imperialistas injetam verba em nações com potencial de exploração e depois as sugam até não haver mais nada a sugar”, argumentava.

Sabia que grande parte dos artigos constitucionais que protegem e dão respaldo a uma nação, na prática não eram empregados.

Era como se a Constituição brasileira fosse, sob certo aspecto, simbólica.

Quando a viu ser redigida sentiu uma sensação de conquista social.

A televisão enaltecia e ressaltava a importância daquele fato histórico.

Quão magníficos eram os deputados e senadores constituintes que davam um novo rumo à nação, mas percebeu que, a manipulação por intermédio de políticos corruptos e desinteressados pela realidade popular acarreta tais desigualdades sociais embutidas no âmago da sociedade brasileira como um câncer que assola um corpo frágil e sem recursos para a cura do mal.

E, para isso, não há remédio social, escrito ou verbal que erradique a doença.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 14/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1698769
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