V - Em meio a tudo isso, a vida continuava morosa na Cidade dos Miguéis

Miguel das Neves Alves, apesar de viver em meio aos livros, não havia conhecido a Sagrada Escritura inteiramente. Apenas em momentos de curiosidade literária a tomava em suas mãos e lia algo nos Salmos, Provérbios e no Novo Testamento.

Apreciava Eclesiastes ou o Pregador, como está escrito, e cultivava sua fé de modo que ela crescia como uma árvore e, sentia que essa confiança em Deus emanava de si a cada dia com maior intensidade.

“Os galhos estão formando uma copa”, afirmava para si.

Não duvidava que: “Por meio da fé individual o homem se torna merecedor de bênçãos” e, assim, conquistaria a imortalidade do espírito, mas, com a morte do pai, quis entender a origem da vida, de onde viemos, para onde vamos, qual o propósito dos seres humanos nesse planeta?

Essas perguntas começaram a estourar em sua mente como pipocas em uma grande panela quente.

Maria das Neves era freqüentadora assídua de uma igrejinha evangélica local. Também tinha contato com o velho padre que sempre a recriminava por: “Haver abandonado o catolicismo e se tornado ovelha de pastor”, como ele dizia.

Ela sempre convidava seu filho ao culto semanal, mas Miguel relutava.

Achava que razão e fé eram algo díspares demais, e que tais cultos só serviam para a arrecadação de verba junto aos fiéis.

Ia esporadicamente; alguns domingos, sem uma freqüência regular.

Argumentava com a mãe que não precisava ouvir lideres religiosos, pois estava escrito na palavra: “O Senhor é o meu pastor”, dizia ele convicto de seus ideais.

Todavia, nunca encontrou respostas convincentes nos livros de filosofia que lera com afinco. Pelo contrário, encontrava dúvidas e mais dúvidas.

Principalmente quando se aprofundou em filosofia Nietzscheniana e conheceu parcialmente o pensamento de Spinoza.

“Esse hábito que carrego acabará me levando a loucura.

Tudo que leio, tudo o que me aprofundo só me traz mais incertezas. Não quero me tornar um cético inconveniente”.

Tinha uns dois ou três colegas de leitura. Identificavam-se apenas pelo gosto literário e se reuniam regularmente para discussões e debates na biblioteca da escola.

E foi aí, na escola, dentro da biblioteca, que o Professor Douglas Hernesto Sanoj, formado em Direito e Língua Portuguesa, freqüentador assíduo do recinto literário do pequeno colégio avistou Miguel.

No início trocaram cumprimentos e como que pelos laços do destino foram se aproximando gradualmente.

Douglas Hernesto Sanoj, então, começou a admirar aquele pequeno e franzino ser sedento por literatura mundial. Percebia que praticamente a cada semana estava com um livro diferente às mãos.

A aproximação foi inevitável, já que Douglas Hernesto Sanoj possuía uma extensa biblioteca em sua residência e a biblioteca da pequena escola não era tão vasta em nível literário global.

O que havia de bom, de real relevância já havia passado pelos olhos do aluno Miguel.

Miguel das Neves Alves começou, a convite de Douglas Hernesto, a freqüentar regularmente sua biblioteca particular.

Tinham afinidades, gostavam de Nietzsche, João Ubaldo Ribeiro, de antropologia brasileira e, foi nessa época que o professor apresentou livros de W. Sumerset Maughan e Thomas Hardy a Miguel das Neves Alves.

Aquela literatura descritiva fascinou Miguel, gerou em seu âmago uma vontade de quando crescer, também ser escritor, ir à Paris, viver pela e para a arte em diversas partes do mundo, na busca incessante pela cultura e pelo conhecimento.

Como dizia Henry Miller:

“Viver em Paris em alguma época da vida, porém nunca morrer em Paris.”

“Nessa cidade estabelece-se por pequenos períodos, mas não para a eternidade”.

Adorava o estilo literário de Maughan assim como o de Gabriel Garcia Márquez e sua realidade fantástica, “ambos detentores do Nobel de literatura, diga-se de passagem”, confabulou Miguel consigo, enquanto se embriagava na biblioteca particular de Douglas Hernesto Sanoj e visualizava ferozmente exemplares dos clássicos da literatura mundial.

O professor Douglas Hernesto Sanoj era um garimpeiro literário e em suas andanças pelo território da União Brasileira adquiriu junto aos sebos e livrarias todo tipo de literatura que, de alguma forma, pudesse enriquecer sua coleção.

Miguel, agora, tinha um patrimônio para desfrutar.

No futuro, Miguel chegou a ter três exemplares de Cem anos de Solidão, escrito por Garcia Márquez.

Leu várias vezes a biografia de Gauguin contada por Sumerset Maughan em Um gosto e seis vinténs, do acervo particular de Douglas Hernesto Sanoj.

Numa noite chuvosa e quente na residência do professor Douglas, onde pernilongos zuniam como violinos desafinados e picavam desesperadamente quem quer que tivesse um pouco de sangue quente correndo nas veias, Miguel foi apresentado a Ramires José de Freitas, que no primeiro momento repugnou a pequena criatura.

Não deu crédito àquele ser coberto de tuberosidades, cara pústula, ressequida e extremamente magro.

Mas, aos poucos Miguel foi se impondo com suas idéias precoces, ricas em argumentos.

Num desses encontros com Douglas Hernesto e Ramires José discutiram filosofia contemporânea bebendo vinho a noite toda.

Nessa época, Miguel tinha quase dezessete anos e já se mostrava hábil com um copo recheado de substância alcoólica nas mãos.

Apreciava vinho tinto servido a temperatura ambiente e cerveja fria.

O professor Douglas era um advogado formado na capital da União, também licenciado em gramática e literatura e se gabava de nunca ter perdido uma causa processual sequer.

Havia nascido e crescido na capital da União Brasileira e viera à Cidade dos Miguéis resolver um processo de algum cliente.

Gostou do lugar e ficou.

Apaixonara-se por uma bela jovem da aristocracia local e teve reciprocidade no sentimento emanado.

Também era alcoólatra inveterado e apreciador de blues e música brasileira.

Tinha senso político, mas era introvertido, apesar de dar aulas no colégio local e se explanar quase que diariamente para os jovens estudantes, mas nunca quis seguir carreira política, pois argumentava ser uma profissão sórdida e imunda.

Namorava há anos (praticamente desde que chegara a cidadela) a filha do prefeito José Pedro Barbosa da Silva Ferreira e Castro que se perpetuara no cargo por meio de conchavos e influência junto à elite e a população carente.

Fazia a política do pão e circo e isso lhe rendia votos e eliminava supostos concorrentes.

Ramires José de Freitas era licenciado em História, formado numa faculdade em Serras do Imperador no interior do estado; era cidadão do mundo, porém sempre só.

Não tinha companheira, ficava aborrecido com companhias humanas.

Por essas e por outras esquizofrenias nunca deu aulas.

Sempre viajava para a Europa, América do Norte e até a Oceania fez parte de sua rota-mundi.

Bebia cerveja servida em temperatura ambiente e gostava de assistir televisão.

Residia naquele local devido à herança de família que possuía terras margeadas pelo grande rio.

Veio conhecer o que lhe cabia por direito, teve contato com o professor Douglas Hernesto Sanoj e resolveu ficar devido ao anonimato que tanto preservava e à suposta calmaria da região.

Desenvolveu um coleguismo pelo seu advogado professor nas ações da herança e foram se tornando amigos. Fato raro.

Dizia para Douglas Hernesto Sanoj que era seu único e necessário amigo. Não se importava com mais nenhuma atitude fraterna causada por humanos.

Numa noite de debates, na propriedade de Ramires José de Freitas, que também possuía um acervo literário fantástico adquirido aos poucos em suas andanças e herdeiro de muitos livros de sua família, “seus verdadeiros companheiros de solidão”; as margens do grande rio, próximo ao matadouro da cidade, Douglas Hernesto Sanoj que havia convidado o jovem Miguel a participar da reunião, o interrogou:

“Você acredita em Deus?”

“Sim”, disse Miguel com voz trêmula.

“Você o vê como um velhinho de barba branca que brinca de criar e cuidar do Universo?” Ressaltou Douglas.

“Não! O vejo como força suprema que rege e harmoniza todo o Universo. Possui grande misericórdia para com seus filhos, mas nem todos são filhos de Deus”.

“Como assim?” Lhe disse o professor.

“Apenas os que crêem Nele é que são considerados verdadeiros filhos de Deus. Se você não acredita que seu pai não existe, ele realmente não existirá”. Completou Miguel.

“Você então acha que Deus sofre por não ser reconhecido por grande parte da população?”

“Você está lendo muito Nietzsche! Não é Dr. Douglas! Em Assim falou Zaratrusta esse filósofo alemão portador de sífilis disse:”

“E Deus também tem seu próprio inferno: o seu amor aos Homens. Você acredita nisso?” Indagou Miguel.

“Não sei em que acredito ou em quem acreditar, mas pela minha ignorância serei salvo!”, se expressou Douglas Hernesto Sanoj a sorrir embriagadamente.

Não mencionei acima na descrição de Ramires José de Freitas, mas num passado não distante essa pessoa era um estudioso da Bíblia Sagrada e hoje é um ateu ferrenho.

Falar de Deus ou em Deus para ele é debate gerador de contenda e discussão. Tornou-se cético em suas andanças pelo mundo.

Mas nessa discussão fez questão de se mostrar distante num primeiro momento, fitando somente a chuva que caia volumosamente, algo inusitado naquela região, porém estava analisando friamente os argumentos de Miguel.

Após cinco litros de vinho bem bebidos ele se expressou:

“A Bíblia foi compilada na Idade Média, escrita a milhares de anos e não vivemos mais como no passado. Não devemos segui-la!”

Ouvindo essas bêbadas palavras, Miguel confabulou:

“Agora Deus deve ter ficado triste. Será que Nietzsche tinha razão? Como são tolos os descrentes, os ímpios. Acreditam em humanos, em qualquer coisa que lhes convém, todavia não crêem nos profetas bíblicos que estenderam a palavra de Deus”.

Continuou o jovem Miguel:

“Quando um cirurgião neurologista intervém cirurgicamente num cérebro ele nunca visualizará os pensamentos que lá foram produzidos, mesmo estando com o cérebro em seu domínio, deste mesmo modo, Deus não será visualizado ceticamente pelos que o contestam, pelos que duvidam sobremaneira sua existência, mesmo estando a habitar aqui nesse planeta criado por Ele, regido por Ele como um maestro rege sua filarmônica. Deus não é visualizado, muito menos tangível em sua essência, Deus é sentido com o coração”.

“Não sejam como Harry Haller, seus lobos da estepe!”

Continuou Miguel, completando seu raciocínio ébrio:

“Não caminhem para o fim, mas para um novo recomeço”. Completou.

“Vamos brindar a salvação”, brincou Douglas.

“Brindem vocês, pobres pecadores”, ressaltou Ramires.

“Olhai para o alto em busca de elevação, eu olho para baixo, pois já sou elevado”, parafraseou Nietzsche, Ramires com seu braço direito estendido, elevando seu copo cheio de vinho tinto seco ao alto.

Como se os gentios, os ímpios também cressem em sua salvação por meio do “não acreditar”, do contestar a Sagrada Escritura.

Naquela noite a amizade dos três se fortaleceu, houve muitos debates, discussões e a admiração de Douglas e Ramires por Miguel se fez notória, recíproca e respeitosa enquanto os três habitaram esse planeta.

Na manhã seguinte ao encontro, Douglas Hernesto Sanoj se fez presente à casa do prefeito e, ao tomarem chá de alecrim com torradas, comentou sobre o jovem Miguel.

José Pedro Barbosa da Silva Ferreira e Castro foi um verdadeiro político na total concepção da palavra.

Tinha elos com todas as classes sociais da Cidade dos Miguéis.

Era como um senhor feudal em seu feudo, onde todos trabalhavam com ele e para ele.

Quando, após uma eleição vitoriosa, candidatava algum de seus parentes para sucedê-lo na seguinte e assim perpetuava-se no poder.

Foi acusado de matar seu vice-prefeito Waldemar Luis de Freitas Filho, herdeiro do primeiro alcaide local por saber que aos poucos, o vice conquistava seu espaço na sociedade miguelense. Waldemar Filho foi encontrado morto dentro de sua residência sentado ao sofá com uma taça de vinho tinto pela metade e a garrafa quase cheia.

Estava com tonalidade azulada e os pés inchados.

Seu corpo foi enterrado no mesmo dia sem nenhum tipo de biópsia e hoje já deve ter sido carcomido pelos vermes.

Na época nada foi encontrado que incriminasse alguém, só o prefeito foi visto por último saindo da casa do vice-prefeito, porém em seu depoimento às autoridades locais apresentou um álibi: uma prostituta que dizia ter passado à noite toda juntos.

O caso foi arquivado por falta de provas.

Causa da morte: insuficiência respiratória, tal qual o pai.

José Pedro era casado, tinha duas filhas que se formaram na capital.

Na época do crime estavam praticamente formadas e prestes a retornar.

Uma era quase médica e a outra obtera o diploma de dentista.

Maria Cecília Ferreira e Castro, a médica, era a escolhida de Douglas Hernesto Sanoj.

Vinha todos os feriados e datas comemorativas visitar a família e o amado.

Era simpática e muito bela.

Tinha longos cabelos castanhos, era alta, magra e detentora uma voz nasalada.

Quando se formou teve importante papel social na comunidade, tratando de doentes sem recurso e exigindo do pai uma política de infra-estrutura e saneamento básico, de modo que eliminasse esgotos a céu aberto e matagais dentro da cidade, além de uma eficiente coleta de lixo urbano.

Solicitou um posto de saúde melhor estruturado e abastecido com remédios e preservativos contraceptivos para a população carente.

Foi sucessora do pai na política, obviamente, já que tinha grande contato com a população carente e, dizia seu pai que é lá, nas baixas camadas sociais, que as eleições são ganhas.

“Se não tiver carisma com os pobres, nem adianta se candidatar”, dizia ele para seus possíveis sucessores.

“Tem que apertar a mão, perguntar se estão precisando de algo, e pode ter certeza que sempre estarão à espera de algum presente. Façam a política do clientelismo e serão bem sucedidos”, completava.

E assim, a cada volta do parafuso, os interesses pessoais e familiares de José Pedro Barbosa da Silva Ferreira e Castro, cravavam no cerne político da pequena Cidade dos Miguéis.

Após ouvir silenciosamente o comentário de Douglas Hernesto Sanoj sobre o jovem Miguel, suas idéias e convicções, o sagaz prefeito refletiu:

“Preciso ficar de olho nessa criatura, nesse efeito colateral do sistema, para que não ocorram surpresas políticas para os próximos anos. Odeio surpresas políticas provindas da plebe. Possuem indignação e revolta pelo o que o destino lhes proporcionou. Nascer pobre é destino, morrer pobre pode ser considerado burrice, e querem mudar o mundo pelos seus próprios atos, achando que bastam serem honestos e idôneos para que tudo se resolva e o mundo se torne justo, ou então, com medo da pobreza que conhecem tão bem passam a usurpar e usar todo o poder em prol de si mesmos, tentando acumular ao máximo fortuna e riqueza, deixando-nos desprovidos de recursos e inesperadamente somem, desaparecem sem deixar vestígios, para alguma propriedade comprada com nosso próprio dinheiro arrecadado para algum lugar do interior desse imenso país. Esse tipo de gente é que é o grande estorvo da política”.

Após tal confabulação, o prefeito convidou o futuro genro a degustar uma garrafa de conhaque francês recebida naquela semana de um amigo político da capital do Estado, e Douglas não se deteve ao convite.

Após duas doses cada um, resolveram então, finalizar a garrafa naquela tarde mesmo, de modo que Douglas Hernesto Sanoj e José Pedro tomaram um porre homérico, um dos maiores de sua vidas e ficaram de ressaca por três dias seguidos.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 15/07/2009
Reeditado em 11/04/2012
Código do texto: T1700627
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