O bom senso, na real

Com certa música de Adriana Calcanhotto, intitulada Senhas, surpreendi-me determinadas vezes por não conseguir, de maneira alguma, alcançar o que possivelmente fundaria a aversão ao tão aclamado bom senso. Vejamos o que, atualmente, tenho concluído acerca do mesmo, sempre com os olhos mantidos à importante noção de versatilidade.

Alcançando-se determinado patamar de maturidade, perceber-se-á que, para prosperar incessantemente como visa o homem mais elevado, far-se-á mister absorver de tudo em tudo. Em escrito meu relativamente antigo (Os não-seres), digo-lhes que não podemos nos limitar às pessoas exemplares para extrair base para prosperar, mas, outrossim, atentar às ruins, as quais estão sempre a nos mostrar tudo aquilo de que devemos procurar nos distanciar.

Nesse sentido, flua o resto: os lugares, as situações, as músicas, as linhas. Tudo isso, em sendo estimulante à prosperidade ou não, há de nos ensinar algo. A vida se torna muito mais valiosa se aprendemos a visualizar tudo dessa forma, transferindo a nossa sabedoria aos olhos (vide o texto, também de minha autoria, A sabedoria nos olhos) e, com isso, até mesmo conseguirmos extirpar o mal de determinados fragmentos de passado e, assim, abrilhantar o que estava arquivado de forma sofrível. É a ferramenta mais hábil à conquista da felicidade plena, como já sustentei. É a única forma de se poder afirmar que, em vida, todo o sofrimento arrostado em felicidade se perdeu.

À consecução de êxito no encampar de todos esses raciocínios, faz-se profícuo tecer menções à versatilidade, ao radicalismo e, por atrelado a ambos se encontrar, ao famigerado bom senso, desfazendo distorções. É que, costumeiramente, concebe-se este como sendo o meio-termo entre os primeiros e possível de ser, universalmente, traçado. Bobagem.

A noção de aproveitamento máximo de tudo pelo homem sábio, acima esboçada, acopla-se à noção de versatilidade, necessariamente. O radical vive trancafiado em torno do que ele considera como o bastante núcleo ao atingimento da plenitude, desconhecendo a elasticidade da alma humana, inclusive ao fracasso à feitura das suas seleções. Nisso, afoga-se em idiotice.

Não existe radical mais difundido do que o designado bom senso, já que se apresenta como a mais perfeita solução para todos os contextos, mostrando-nos, sempre, taxativas medidas amplamente pactuadas. O bom senso, com efeito, funde-se ao radicalismo, em uma relação de espécie e gênero, e, jamais, consistirá em um meio-termo entre aquele e a versatilidade, como foi dito que se entende por aí.

Achando-se muito poderoso, o senso comum crer-se universal e a medida perfeita a ser observada em quaisquer contextos tão-somente por se reconhecer como fruto de sucessivas convenções sociais - as mesmas que, por imperfeitas, constroem realidades criminosas. À guisa de comparação, em suma, o bom senso é aquele indivíduo, jocoso ao extremo, que, julgando-se magistral, é cheio de máculas de todas as magnitudes e em tudo o que prega. O bom senso, nessa esteira, é o próprio desvio e, por tal, merece ser desviado.

A única verdade absoluta é o contexto. O contexto é fato. E não pode se apresentar senão de uma única e absolutamente única forma. O que mudará, em realidade, são as leituras que podem ser construídas sobre uma mesma circunstância e os níveis em que tais leituras podem ser aprofundadas. A forma de arrostar o fato, sempre, vai variar, porque em constante variação se encontra o ser humano. E variará, eminentemente, a depender do quão sejam diversas as mentes sobre ele debruçadas.

A versatilidade, conclusivamente, rima com flexibilidade e esta não tem limites para considerar: é sábia, ponderando e aproveitando tudo o que cerca tudo o que lhe chega. A versatilidade é madura e, por tal, opõe-se ao radicalismo, equiparável a um monstro encorpado de olhos vendados a caminhar em desvario. E, interessante, opcionalmente vendado. Um exemplo de radicalismo é o bom senso. Radicalismo e bom senso, pois, vale repisar, estão imiscuídos em uma relação de espécie e gênero.

A administração feliz da versatilidade, por óbvio, não será resumida nas linhas de um texto qualquer e, sim, requererá um interminável exercício de inteligência e sabedoria. Ser versátil é ser aberto à chegada de informações. Até aí, temos significativa fatia do caminho percorrido ao alcance da sapiência plena. O como essas informações serão assimiladas já demanda um potencial de leitura crítica muito mais difícil de ser logrado.

Resumidamente, diga-se que não existe um gosto a ser seguido como um padrão, um senso que possa ser, universalmente, determinado como bom e um conjunto de modos a ser venerado sem que variáveis sejam consideradas. O que é bom ou mal não o pode ser para tudo. Depende. Tudo depende. E depende do contexto que se alastre à nossa frente. O contexto, sim, é soberano: é, como dito, fato e, por tal, é irrefutável.

Pelo curto e suficiente exposto, acompanhemos a artista: "Eu não gosto do bom gosto, eu não gosto do bom senso, eu não gosto dos bons modos. Não gosto!"