ENTRE A QUEDA E A ATERRISSAGEM
Destruir a estética e tornar o enredo um objeto-pretexto para se impor como veículo em movimento. O cinema também serve para isso. Refiro-me ao filme de Mathieu Kassovitz, O ÓDIO (La Haine, France, 1995), protagonizado por Hubert Koud, Said Taghmaoui e Vincent Cassel.
Não se trata de uma mera apologia ao ódio e, tampouco, de uma afirmação imediata da relação entre causa e efeito, considerando que aparentemente o filme não pretende (?) estabelecer uma espécie de lógica moral, formal ou dialética, mas apenas expõem elementos que estruturam o sistema repressivo de uma sociedade composta por desiguais onde - até mesmo entre si - existem aqueles que são mais desiguais que os outros. Obrigado, Mister Orwell, mas o ³big brother² do andar de baixo não é um computador. A polícia mete a porrada e é um salve-se quem puder e como puder.
Se, conforme Vladimir Maiakovski, o capitalismo cegou o cinema atirando-lhe pó de ouro nos olhos, em prol do acúmulo de dinheiro comovendo corações com pequenos argumentos piegas, Mathieu Kassovitz parece concordar com o poeta de que isso deve terminar. Suas imagens são nuas e cruas. Sem meros discursos, sem exageros e sem apelações fantasiosas. Os muros falam, ora pela estrutura carcerária, hospitalar e labirintal, ora pelas palavras de ordem, tanto pela propaganda oficial quanto pela caligrafia dos excluídos manifesta nas pichações.
Daí, de um lado, uma grande fotografia do genial e mau humorado poeta de ³Les Fleurs du Mal², Baudelaire (uma espécie de maldito adotado pela kulta cultura). De outro, ³rola² um Bob Marley estampado quase como um crucifixo no tugúrio de um dos jovens marginalizados. Noutro momento, uma campanha publicitária sentencia: "Le Monde est à Vous" (O Mundo é de Vocês). Mas que mundo é este? Quem são "eles", os que escreveram? E quem são os "vocês" para os quais a mensagem está sendo enviada? Um dos integrantes da juventude atirada às traças decide intervir com um pequeno retoque, substituindo o "vous" por "nous", ou seja, onde se lia "Le Monde est à Vous" (O Mundo é de Vocês), agora, depois da sutil cirurgia, lê-se: "Le Monde est à Nous" (O Mundo é Nosso). Bem melhor que a requintada e requentada exclusão.
Não é por acaso, no meio desta zona toda, coexistem entre si um negro, um árabe e um judeu. Como se não bastassem os problemas " inerentes" às suas condições de sobrevivência, ainda têm de enfrentar um bando de skinheads. Tudo isso se passa na Europa, em especial, na velha Paris até hoje ostentando sua Torre Eiffel. É dizer que o filme desmitifica a perfeição e harmonia do chamado "primeiro mundo", pois do alto de seus royalties - de onde vomitam regras para os países por eles mesmos denominados "terceiro" - não se deram conta de sua falência. Fica bastante claro que este modelo de sociedade somente funciona com a repressão física e espiritual (favor não confundir com misticismo) e que, obviamente, a moral - entendida como regras de conduta para uma possível convivência sem maiores atritos - está a serviço daqueles que dominam para assegurar que continuem dominando. Um mundo caricato de shopping centers onde, conforme o filme em questão, "os que param nos degraus das escadas rolantes são os piores".
Em suma, voltando a Maiakovski que acredita no cinema quase como a possibilidade da concepção do mundo, O ÓDIO mostra a história de uma sociedade que cai e - como um homem que despenca do 50º andar - durante a queda, a cada andar, tenta se conformar repetindo-se a si mesmo: "... até aqui tudo bem, até aqui tudo bem, mas o que importa é a aterrissagem, não a queda".