PARADOXOS ATUAIS DA MEDICINA

Sérgio Martins PANDOLFO*

   “A cura é anônima. A morte é notícia”.
          Júlio Sanderson de Queiroz, cirurgião emérito e Professor de Medicina.

     Vêm-se avolumando, indubitavelmente, as ações e demandas contra os médicos – e também contra entidades que prestam assistência médica – nos últimos anos. Por que vem ocorrendo isso?
     Inúmeras são as causas que têm sido apontadas para justificar essa ocorrência, que é, ressalte-se, de observação mundial e reflete aparente paradoxo: enquanto a Medicina desenvolveu-se, evoluiu, expandiu-se de maneira quase estonteante, a possibilitar a concretização de feitos assim diagnósticos como terapêuticos que há algum tempo não poderiam ser sequer cogitados ou constituíam pouco mais que uma quimera, quase um milagre, a imagem do médico, outrora próxima do divino, se foi deteriorando gradativamente até chegar aos dias atuais em que, quando muito, é ele considerado mero profissional da saúde ou, como da especial preferência de alguns segmentos ideológicos, “trabalhador da saúde”.
     De fato, feitos realmente notáveis da medicina contemporânea não nos permitem possa ser ela sequer cotejada com a da época do obscurantismo pré-pasteuriano, para não retrocedermos demasiado. Só para pôr exemplos, hão de ser realçados: a vacina antipólio; a antibioticoterapia; as refinadas técnicas de terapia transfusional; as próteses; a microcirurgia; os transplantes de órgãos e, mais proximamente, a moderníssima e revolucionária técnica de cirurgia videoendoscópica. E os médicos, que tornaram exequível e desenvolveram essas maravilhas, por que não são igualmente exalçados, mas, ao contrário, são cada vez mais esquecidos, ignorados, contestados, hostilizados até?
     Não fora a Medicina ciência enigmática e multifacetada, que os esforços e a dedicação de seus fiéis batalhadores vêm aclarando de pouco em pouco, ao longo dos séculos, cremos seria mais fácil elucidar tal aparente contraditoriedade. Entretanto, podemos apontar, sem receio de incorrer em impropriedade ou imprecisão, como causa primária, essencial, a queda do prestígio e da credibilidade profissional do médico, para o que contribuíram, dentre outros, os seguintes fatores: 1) a banalização de coisas outrora notáveis; 2) a fácil e farta disponibilidade do profissional; 3) a desmistificação da ciência e da atuação médica; 4) a elevação do nível de conhecimentos da população e a ampliação de seus direitos de cidadania; 5) a inquestionável deterioração da formação médico-profissional.
     Os dois primeiros fatores, por obviedade, dispensam maiores explicações. Depois que a vacina de Jenner praticamente erradicou do mundo a varíola, esta deixou de ser um flagelo, não mais preocupa e, por isso, nem mais dela se lembram ou se arreceiam. A sífilis, que já dizimou exércitos e populações inteiras, após o advento da penicilina de Fleming deixou de merecer atenção e importância. O grande Warren provocava delírios na platéia que o via realizar amputações de membros em poucos segundos, sem anestesia; depois que esta alcançou o nível de elevação, refinamento e segurança com que hoje é praticada, a operação deixou de ser espetacular, a anestesia vulgarizou-se e, se porventura algum acidente anafilático (reação essencial e imprevisível a uma substância) ou de idiossincrasia (sensibilidade anormal a uma droga) medicamentosa ocorre, entre milhões de outros atos bem sucedidos, logo se lhe imputa a um provável “erro médico”. A AIDS, que ora a todos atemoriza (a alguns aterroriza), põe em evidência a todos os cientistas, pesquisadores, drogas e fatos novos que contribuem para o seu controle, a sua contenção, a sua cura, após o que declinará de importância, não mais merecendo destaque, assim como os médicos e cientistas que dela se ocuparem.
     Os médicos de hoje fazem, sem ponta de dúvida, muito mais coisas notáveis que os de antigamente, porém, tornaram-se facilmente disponíveis, fartos, até, e atuam através de métodos científicos, que não suscitam o mesmo encanto da prestidigitação. Seu diagnóstico e sua arte não causam mais admiração. A Medicina é levada e divulgada para além dos recônditos das instituições acadêmicas, detalhada, esmiuçada, decodificada e exibida por meios outros que não os estritamente científicos como a imprensa leiga e a televisão, às vezes até de forma antiética e exibicionista, o que não deixa de ser, no entanto, fator positivo para a elevação cultural da população interessada e atenta. As técnicas científicas exaltam a Medicina, mas despersonalizam o médico, ainda que eficiente e capacitado, que passa a ser, assim, cada vez mais exigido e testado pelos que dele se valem. Qualquer senão, falhas às vezes até inexistentes, mas supostas pelos pacientes são motivos bastantes para inquiná-lo com alegação de negligência ou imperícia. A massificação do atendimento nos postos de saúde espalhados pelas cidades acabou, de vez, com a tão desejada e não mais possível relação médico-paciente. O paciente não vai mais procurar o médico, mas, sim, atendimento médico.
     A terceira circunstância é, também, facilmente entendível: a elevação, o prestígio do médico, pressupõe ignorância, por parte da clientela, dos mecanismos que viabilizam o sucesso do tratamento que ela recebe, isto é, envolve medo, magia, misticismo, três elementos intimamente ligados ao desconhecimento da essência dos fatos científicos. Raios, relâmpagos, erupções vulcânicas e toda uma vasta fenomenologia da Natureza já foram atribuídos à ira dos deuses. Explicados pela ciência, banalizaram-se, não mais atemorizaram. Os mágicos só nos encantam e causam admiração enquanto não descobrimos ou não nos são revelados seus truques. Até com a Igreja tem isso ocorrido e a queda de seu prestígio e influência, nos dias correntes, deve-se à elucidação, pela ciência, de muitos “milagres”. Explicado o milagre extingue-se o encanto.
     Num passado não muito remoto, o universo do conhecimento científico como um todo e médico em particular era infinitamente menor do que o dos dias atuais, de modo a tornar relativamente fácil ao profissional da Medicina atingir um elevado grau de abrangência e, inclusive, incursionar pelas áreas humanísticas, das letras, das artes, dominar vários idiomas e, assim, ser reconhecido pelo comum das pessoas como indivíduo de grande saber, de conhecimento ilimitado; isto lhe conferia aura de ser superior, de um semideus e, como tal, era respeitado, quase venerado; sua palavra, suas ordens, acatadas sem restrições ou titubeios. Com a inexorável e explosiva ampliação do conhecimento técnico-científico, o campo de atuação e de domínio do médico foi ficando cada vez mais restrito, confinado a certas áreas ou segmentos, pouco tempo lhe restando mais para o aprendizado de outros saberes, limitando-se-lhe assim, drasticamente, o nível de conhecimentos e, consequentemente, a capacidade de impressionar.
     Em somente duas áreas da Medicina os médicos conservam, ainda hoje, algo do misticismo e da divinização do passado: a psiquiatria, pelas dificuldades singulares inerentes à especialidade, ao lidar com valores de difícil mensuração e entendimento por parte da clientela, que nos transferem para o terreno do sobrenatural, máxime em seu segmento mais celebrado, a psicanálise, hoje seguida por multidões que a ela se submetem quase como que a uma religião, e a cirurgia plástica, pelos resultados surpreendentes e envolventes que pode ensejar sobre um dos objetivos mais perseguidos pelo ser humano, a beleza física, valendo-se de recursos pouco compreendidos ou inapercebidos pelos leigos, como incisões intracavitárias (boca, narinas), em pregas e sulcos cutâneos ou em área pilosas, “que não deixam cicatrizes”, suscitando a idéia de magiação.
     A ascensão do nível de conhecimentos da população e o discernimento de seus direitos fizeram com que a clientela não mais se conformasse com resultados por ela tidos como insuficientes ou insatisfatórios, passando a exigir, por eles, compensações ou reparos indenizatórios.

Nota: Na ilustração acima o quadro  "O médico" de Sir Luke Fields.
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*Médico e Escritor – SOBRAMES/ABRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 20/09/2009
Reeditado em 30/05/2012
Código do texto: T1820970
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