Ao ensinar, eu aprendi

Ao ensinar filosofia, eu aprendi...

Wilson Correia*

"O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim,

forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo.

Diverjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei.

Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo,

eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor

solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio

essa por fundo de todos os matos. Amén!" (ROSA,

1988, p. 8).

A moeda angariada pelo ensino tem nome: aprendizado. O esforço para ensinar é o maior de todos os meus mestres, porque, para entrar em uma sala de aula na condição de professor, tenho de viver a vida inteira como aprendiz. Por conta desse salutar e inevitável paradoxo, mais aprendo do que ensino. E este pequeno texto em “30 Aforismos” tem por objetivo socializar com quem se interessa pelo assunto alguns desses meus aprendizados.

1 Ao ensinar filosofia, aprendi que a “sombra” denominada pelo grego Platão bem pode ser a “coisa” real diante dos meus olhos. Aprendi que as “imagens”, animadas ou inanimadas, até nos remetem às idéias, aos conceitos, às representações, mas que, sem materialidade, elas não podem impressionar meus olhos, na concretude tal e qual se fazem para mim.

2 Ao ensinar filosofia, aprendi que, como disse o alemão Immanuel Kant, o homem e a mulher são aquilo que a educação faz deles, mas que o mais importante é o que cada um faz de si próprio. Nisso, fica descartada a determinação exterior ao âmbito subjetivo e objetivo da vida pessoal, profissional e social de uma pessoa, fontes para aquilo que ela pode ser.

3 Ao ensinar filosofia, aprendi que ninguém está no mundo para ser

controlado por outrem, mas para com ele conviver, estabelecer relações de mútuas trocas e crescimento pessoal. Sem isso não é possível se falar em individuação saudável, que concorra para o satisfatório desenvolvimento humano, qualificado pela satisfação, pelo contentamento e pela auto-realização.

4 Ao ensinar filosofia, aprendi a desconfiar da bondade da razão pura

e plenipotente e a potencializar a lucidez do coração. Por conta disso, assimilei a mensagem que me garante que as crianças, os idosos e os loucos não são desprovidos de lógica e sentido, mas que, ao contrário, eles podem portar os conhecimentos puros sem os quais não podemos nos dizer humanos.

5 Ao ensinar filosofia, aprendi que, na constituição de uma sociedade mais igualitária, mais justa e mais feliz, tanto concorrem boa educação quanto economia justa, política limpa e ideologia arejada. De um modo ou de outro, sozinha a educação não pode muita coisa. Potencializada com o auxílio dessas outras dimensões da vida em sociedade, ela pode ser a nossa força maior.

6 Ao ensinar filosofia, aprendi que o ensino pode ser completa e profundamente controlado pelo ensinante, mas que o aprender não se submete a nenhuma regulação, a nenhum controle. Cada aprendiz aprende segundo tempos, espaços e infinitas variantes que atravessam a vida pessoal, social, econômica, política, profissional, afetiva e ideológica que vivencia.

7 Ao ensinar filosofia, aprendi que a educação poderia ser compreendida como salvadora da sociedade, o que nem sempre as escolas, os professores e os demais profissionais da educação escolar dão conta de assumir e realizar. É por demais temerário colocar apenas nos ombros da escola a missão de harmonizar e salvar a sociedade. Toda sociedade é conflituosa.

8 Ao ensinar filosofia, aprendi que se poderia compreender a educação

como transformadora da sociedade. Para tanto, bastaria a conscientização político-ideológica e socioeconômica. Mas, aprendi, também, que apenas conscientização nessas perspectivas não basta. A escola só pode trabalhar no sentido de transformar a sociedade se a sociedade tiver um projeto de nação igualmente transformador.

9 Ao ensinar filosofia, aprendi que a educação escolar poderia, ainda, ser defendida na perspectiva de ser uma instância reprodutora da sociedade. No entanto, ainda que o peso da reprodução cultural recaia sobre a escola, e ainda que a escola possa se dividir em duas, uma para quem pensa e administra outra para quem se deixa pensar e administrar, a escola também produz conhecimento, inova e constrói.

10 Ao ensinar filosofia, aprendi que nenhuma verdade é absoluta, feita, dada, pronta e acabada, definida e definitiva, de modo a ser mobilizada como dogma. O que pode existir é a busca constante de

certezas provisórias e de verdades aproximativas do real, sempre modificáveis, corrigíveis e aperfeiçoáveis no e pelo processo contínuo de produção de conhecimento, de saber e de informação.

11 Ao ensinar filosofia, aprendi que nenhum conhecimento ou nenhum título faz um ser humano melhor que o outro. Epistemologicamente

diferentes, os humanos são iguais do ponto de vista antropológico: todos nascem, aparecem, vivem a vida que dão conta, perecem e um dia morrem, desaparecem do cenário e se mandam desse mundo, às vezes, alegre; às vezes, amalucado e tristonho.

12 Ao ensinar filosofia, aprendi que as coisas concretas, reais, e as contingências do existente, as vicissitudes, configuram para mim tudo aquilo que a realidade pode ser, coerente com o que o grego Aristóteles propôs, e das quais seria insanidade se eu tentasse delas fugir ou negar-lhes o reconhecimento e a legitimidade que impõem pelo simples motivo de estarem bem aí, à minha intelecção.

13 Ao ensinar filosofia, aprendi que nem sempre o ser humano será

construtivo, proativo e reconhecedor da iniciativa alheia, chegando mesmo a impedir que o outro produza em nome de um emparelhamento na mediocridade, na lei do menor esforço, do “assim está bom”, do “sempre foi feito assim” e do “nós somos assim”. Para mudar isso tudo, aprendi, é preciso fé, coragem e ousadia.

14 Ao ensinar filosofia, aprendi que, nas relações humanas, há ocasiões em que o afastar-se, o distanciar-se e o separar-se são as únicas maneiras de salvaguardar o vínculo e o sentido de um na vida do outro, o afeto que protagonizam. Nem sempre o estar junto é o melhor caminho, a solução ou o que somos obrigados a viver, a contragosto, muitas vezes na dor e na infelicidade a dois.

15 Ao ensinar filosofia, aprendi que o preconceito é um conceito que não chegou a amadurecer, sendo, portanto, plenamente dispensável. Aprendi, também, que a força do preconceito pode desmantelar nações, conduzir à morte, motivar guerras sobre guerras, potencializar a destruição e a falta de entendimento, reconhecimento, reciprocidade e de compaixão e cooperatividade entre os seres humanos mundo afora.

16 Ao ensinar filosofia, aprendi que o essencial à nossa educação escolar é a relação pedagógica, essa que coloca o humano em interação com o humano. Aprendi que, preferentemente, essa relação pode e deve ser vivida segundo o pressuposto da igualdade das inteligências, essa que, de fato, nos torna concidadãos do mundo e terráqueos companheiros, comedores do mesmo pão.

17Ao ensinar filosofia, aprendi que o silêncio pode ser um mestre inigualável, sobretudo quando faz com que pensemos por conta própria, seguindo nosso próprio percurso de vida; principalmente quando nos diz que temos de buscar, individualmente, cada um os seus próprios caminhos na vida, no aprendizado, no ensino, no exercício profissional e na vivência da condição humana no mundo.

18 Ao ensinar filosofia, aprendi que o emprego do pronome “eu”, antes

de ser usado por egotismo ou idiossincrasia, pode significar o auto-reconhecimento da minha própria subjetividade e do meu autovalor. Essa e esse que me fazem cônscio da minha existência no tempo e no espaço, numa presença dinâmica, livre, intensa e responsável, tal como a obra do alemão Martin Heidegger nos inspira.

19 Ao ensinar filosofia, aprendi que não há a menor neutralidade no campo da epistemologia, assim como não há a pintura sem a ação das mãos humanas. Cada tipo de conhecimento de que o ser humano é capaz de produzir e sistematizar carrega em si a marca do humano, apresentando os interesses, valores, crenças, conceitos, preconceitos, idéias, opiniões e saberes de quem o produz.

20 Ao ensinar filosofia, aprendi que ao lado da quantidade deve se colocar a qualidade, o número e o valor. Sem essa parelha, não apenas o conhecimento, mas a vida perde a razão de ser no âmbito individual, do trabalho, da sociedade, da existência. Como nos ensinou o austríaco Viktor Frankl, para que serve uma vida desprovida de sentido? De que adiantará estar no mundo e tentar ser sem um para quê? Ora, o valor é a base de todo sentido, de todo significado e de todo propósito existencial.

21 Ao ensinar filosofia, aprendi que os seres humanos podem buscar a riqueza como uma maneira de se auto-afirmar perante os semelhantes, a sociedade e o mundo. Mas aprendi, ainda, que nenhuma riqueza compensa se não for acompanhada da idéia de que a riqueza nasceu para o humano, e não o humano para a riqueza. Nisso a generosidade é tudo, pois é o humano que deve ter riqueza, e não a riqueza ter o humano.

22 Ao ensinar filosofia, aprendi que homem e a mulher podem centrar suas vidas na busca do poder. Porém, a glória do poder não pode substituir a idéia de que o poder existe para fazer com que uns contribuam para com os outros, cooperativa e solidariamente, reconhecendo que o viver tem uma dimensão coletiva e que, sem a manutenção compartilhada dela, a vida seria impraticável.

23 Ao ensinar filosofia, aprendi que os humanos podem buscar o prazer em suas vidas. No entanto, até o excesso de prazer pode resultar contrário àquilo para o que ele é buscado, produzindo dor e tristeza ao invés de satisfação, contentamento e alegria. Cada coisa deve ser vivida conforme o valor que apresenta, na medida certa, sem faltar ou sobrar em cada vida que se vive.

24 Ao ensinar filosofia, aprendi que o “nós” não precisa ser usado apenas no sentido magestético, mas, sim, para incluir o “eu” e o “outro” formadores do “nosso”, do qual depende a maior parte da minha vida e da vida dos que me carcam. Isso em uma coexistência baseada na cooperação, na solidariedade e no compartilhamento do ser e do estar no mundo, como o austríaco Martin Buber e seu colega Heidegger nos ensinaram.

25 Ao ensinar filosofia, aprendi que o homem e a mulher podem se dar à busca do saber. Contudo, isso, se for intentado de maneira abusiva e excessiva, às vezes pode resultar em miopia diante do mundo, em cegueira epistêmica. Nem teoricismo nem pragmatismo exacerbados, mas teoria e prática na medida. Assim como o remédio, o saber deve ser fruto da dosagem certa, exata e feliz.

26 Ao ensinar filosofia, aprendi que o humano é um ser no mundo, de cuja relação ele extrai entendimentos sobre a realidade, interferindo no mundo da natureza e alterando as condições dadas da e pela existência no aqui e agora de sua história. Dessa maneira, não se trata de buscar uma essência única, definida e definitiva para as coisas, mas de conceber essa essência em dinâmica formação. Minha essência é construção.

27 Ao ensinar filosofia, aprendi que não há conhecimento sem valor, razão pela qual é necessário lidar com a informação objetiva de maneira que ela se transforme em conhecimento subjetivo, sendo que este pode chegar a se constituir em saber, sobretudo para qualificar a relação do homem e da mulher com o universo, misturando o viver e o conhecer, sabendo-os éticos, sempre, para o bem ou para o mal.

28 Ao ensinar filosofia, aprendi, com os liberais John Locke, inglês, e David Hume, escocês, por exemplo, o valor da liberdade. Com os alemães Karl Marx e Friedrich Engels apreendi o valor da justiça. Compreendo que o que nos desafia é a implantação de um sistema econômico, de um regime político e de uma prática cultural que articulem os dois valores, justiça e liberdade, para que tenhamos a paz de uma vida feliz.

29 Ao ensinar filosofia, aprendi a compreender o comportamento do ser humano e a não me assustar com aquilo de que o homem e a mulher são capazes, nos limites de sua inteligência e no desregramento de sua estupidez. Porém, entendi que se ambos quiserem eles podem revestir os relacionamentos que travam com os valores da veracidade, da verdade, da autenticidade, da franqueza, da cooperação recíproca e da solidariedade.

30 Ao ensinar filosofia, aprendi que o humano é um ser consciente (sabe o que sabe e sabe o que ignora), o qual pode usar a própria inteligência para fazer o bem e para fazer o mal. Aprendi que cabe a ele criar, reconhecer, legitimar e colocar em prática os valores sem os quais não seria possível dizer de sua humanidade que ela difere do instinto, puramente cego e predeterminado, preferentemente, em nome da potencialização e enriquecimento da vida boa, o único patrimônio e o único dado de realidade o qual ninguém pode duvidar que é.

Conclusão

Ao analisar esses aprendizados, posso concluir que o ensinar filosofia me ensinou a não cristalizar nenhum aprendizado em uma verdade fechada e absoluta. Por isso, todos esses aprendizados podem ser desaprendidos. Quando se trata de ensinar filosofia, mais vale o enlevo do percurso do que, propriamente, a festa da chegada. Vale a busca, a atitude e o desejo de se humanizar ao lado de quem, generosamente, se coloca do nosso lado na condição de companheiro, ensinante ou aprendiz.

Referências

ROSA, J. G. 'Grande sertão: veredas'. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

ARISTÓTELES, BUBER, ENGELS, FRANKL, HEIDEGGER, HUME, KANT, LOCKE, MARX, PLATÃO.

*Wilson Correia possui Licenciatura em Filosofia pela PUC-GO, Especialização em Psicopedagogia pela UFG, Mestrado em Educação pela UFU e Doutorado em Educação UNICAMP. É professor Adjunto na UFT. Tem experiência na área de Filosofia da Educação, com ênfase em: Currículo, Ensino de Filosofia, Formação Docente, Ética e Cidadania. É autor de TCC não é um bicho-de-sete-cabeças. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.