Níveis de Organização. Um compromisso com um sonho.

Quando nos deparamos com as menores estruturas da matéria, observamos que são partículas subatômicas, sobre tudo, os prótons, os elétrons e os nêutrons, e que estão arranjadas em forma de unidades atômicas, denominadas de átomos. Cada um desses átomos forma combinações, mais complexas, as moléculas. Estas unidades podem ser consideradas como níveis de organização da matéria, que mostram um arranjo hierárquico, onde o nível superior contém o inferior.

Os níveis de organização moleculares, ao longo do tempo, foram organizados de tal forma que passaram a constituir um novo estado de organização, os seres viventes. Para tanto, as moléculas organizaram-se e construíram os organóides, que por sua vez, contribuíram para o surgimento da primeira célula. Uma célula é uma combinação específica de organóides, com uma organização suficientemente complexa para conter todos os dispositivos necessários para garantir o metabolismo e a autoperpetuação. Portanto, a célula representa a menor estrutura completamente viva conhecida, capaz de se comportar como um organismo vivo e independente, pois como as bactérias e os protozoários, que são unicelulares, apresentam algumas características que permitem sua existência:

1.Obter energia para o seu funcionamento;

2.Obter matéria para sua construção e materiais desgastados;

3.Reproduzir-se, para possibilitar a manutenção da vida; e

4.Responder aos estímulos do meio.

As células organizaram-se em grupos distintos, quanto a forma e a função, formando outro nível de organização, os tecidos e estes se arranjaram em diferentes órgãos. Cada órgão, foi agrupado, de acordo com suas funções, originando outros níveis de organização, Aparelho e Sistema. Neste momento de organização, foi necessário um salto maior, pois tecidos, órgãos, aparelhos e sistemas não foram capazes de garantir o metabolismo e a autoperpetuação, características, que como vimos anteriormente, são indispensáveis ao organismo vivo e independente. Esse empasse se resolveu com a reunião desses níveis de organização em outro mais complexo, o organismo pluricelular.

Os organismos de uma mesma espécie, que viviam em um determinado espaço-tempo, construíram outro nível de organização, a população, que por sua vez, se reuniram com outras populações locais e constituíram a comunidade.

A sobrevivência do nível de organização comunidade dependeu de uma evolução das relações de troca entre os organismos (fatores bióticos) e destes com os componentes não vivos (fatores abióticos) daquele espaço, como o clima, a água e o próprio espaço. Essas relações entre os fatores bióticos e abióticos trouxeram uma nova experiência de organização, o nível de ecossistema.

A sobrevivência dos ecossistemas é garantida por um contínuo fluxo de matéria e energia, que une todos esses níveis em um nível de organização ainda maior, a biosfera.

A leitura que foi feita nos parágrafos anteriores nos mostrou uma busca, não determinista, de novas experiências, que culminou com a manifestação da vida, em um dado momento da história de nosso planeta e do universo. Porém, foi uma leitura muito cartesiana, dura, sem um sentido transcendente mais explícito, que pudesse responder aos nossos questionamentos humanos, tanto filosóficos, quanto sociais e espirituais.

Esse conflito diante de uma leitura cartesiana fisiológica dos níveis de organização, e a dificuldade de se recortar aspectos filosóficos, sociais e espirituais, nos coloca diante de um desafio: buscar este recorte e amadurecer o significado desse processo de organização para a composição de nossa pessoalidade, de nossa socialização e de nossa espiritualidade.

Se estivermos nos referindo a pessoa, nosso recorte necessita ser feito ao nível de organismo pluricelular, que somos. Esse organismo que somos se expressa, primeiramente, como um corpo que é um inconsciente visível, é o nosso texto mais concreto, nossa mensagem mais primordial, é a escritura da história da organização que somos. O nosso corpo sente, fala, comunga de todos os níveis anteriores a ele, enquanto organismo, e troca estas experiências com os níveis mais superiores.

Nesse sentido, nós organismos, somos a síntese de uma história natural, que ao longo de bilhões de anos, foi sendo arquitetada, com erros e acertos, angústias e felicidade, mas sempre experienciando uma novidade, com riscos calculados, capaz de criar novos espaços para o diálogo entre o novo, o velho e o viável para a vida.

Há um sonho embutido em cada um de nós, o sonho da experiência bem sucedida. Mas, o que quer dizer: “experiência bem sucedida”?

Um nível de organização bem sucedido é aquele que tem a capacidade de dialogar de forma aberta, simples e natural com o outro. É flexível para perceber todo seu universo, cultivando o dom de se deslumbrar e se espantar com o essencial, mesmo que o caminho essencial pareça viciado e repetitivo. É necessário nascer para a eterna novidade da vida, o milagre do servir.

Como vimos, cada nível de organização tem o mesmo propósito, ser instrumento para o sonho dos anteriores e contribuir para o sonho dos posteriores. Ser um organismo, parece muito simples, mas incorporar a dinâmica da inteireza de ser um ser vivo, passa pela garantia de que não haja uma separatividade entre o organismo e seu compromisso de servir.

Deixar que a pessoalidade humana resplandeça no organismo humano é, antes de tudo, compreender e dar continuidade aos propósitos da organização natural. A perda dessa pessoalidade pode ser identificada, ao longo de nossa história humana, quando a fragmentação invadiu nosso organismo e nos separou do ambiente natural. Esta separatividade evoluiu para uma fragmentação ente o indivíduo e a sociedade. A presença dessa fragmentação rompeu a inteireza do organismo humano, sua resposta foi o rompimento com a continuidade dos propósitos da organização natural.

Este estado de falta de inteireza da pessoa humana e falta de compromisso com os caminhos da organização podem facilmente ser sentidos:

1o. Quando observamos um ambiente natural preservado, como uma floresta, um lago ou o mar, nossa reação é de um sentimento de bem estar;

2o. Quando nos deparamos com um ambiente degradado, somos invadidos de um sentimento de angústia;

Por que?

É simples, a degradação ambiental não faz parte do sonho dos níveis organizacionais que nos usam para sonhar e construir novos caminhos. Esse estado de degradação nos angústia também, porque traz à tona, o nosso estado interno de conflitos, mal resolvidos, que nos impede de ser o que somos e de resgatar o divino, que vincula, unifica e restaura a inteireza vital.

É muito rica esta reflexão sobre o compromisso da pessoalidade, mas ainda, é necessário ressaltar outro recorte interessante, a extensão de nossos atos. Como vimos, somos parte de um todo, e quando alteramos a lógica na qual estamos inseridos, não há apenas o prejuízo de nós mesmos, mas há o rompimento de um compromisso herdado de se experimentar novos caminhos, com um risco calculado, quando o limite é o outro.

A nossa experiência em buscar novos caminhos parece não responder adequadamente à lógica embutida no processo de organização do universo, pois sempre há um risco muito maior, do que aquele que se esperava de um nível de organização.

Para ilustrar esse conflito, quanto ao caminho, tomemos uma lenda que se contava em Samarra, uma cidade que se estendia de Jerusalém para o norte, até a Mesopotâmia.

Contava a lenda que na antiga Bassora, um soldado, cheio de medo, foi até seu rei e lhe disse: “__ Salvai-me, soberano, ajudai-me a fugir daqui. Estava na praça do mercado e encontrei a Morte, vestida de negro, que me olhou de modo malévolo. Cedei-me vosso cavalo, para que eu possa correr até Samarra. Se permanecer aqui, temo por minha vida”. “__ Dai-lhe o melhor corcel”, disse o soberano, “o filho do relâmpago, digno de um rei.”

Mais tarde, na cidade, o rei encontrou a Morte e lhe disse: “__ Meu soldado estava apavorado. Disse-me que te encontrou hoje, no mercado, e que o olhavas de modo malévolo”. “___ Não, não”, respondeu a Morte, “meu olhar era de surpresa apenas, pois não sabia o que ele fazia hoje por aqui, visto que o esperava em Samarra, esta noite. De manhã, estava muito longe de lá”.

Talvez haja uma Samarra em nossos planos de organismos humanos. De fato, precipitando-nos para resolver os problemas imediatos, confiando em uma tecnologia de intervenção, com riscos não tão calculados, isto é, a escolha do corcel mais veloz, pode estar nos levando a caminhos, que seremos vencidos por problemas fundamentais que não mais estaremos em condições de superar. E aí comprometeremos todo o caminho até então trilhado passo a passo, sem pressa e sem querer tudo de uma só vez. É imprescindível termos a consciência de que o caminho se faz passo a passo, um passo de cada vez, um passo a mais…

Enfim, nosso nível de organização é de organismo, e nosso compromisso é a manutenção dos compromissos dos níveis anteriores, bem como a relação com o ambiente, como já discutimos anteriormente, e a relação com o outro organismo humano e não humano. Mas, é fundamental nos conscientizarmos deste momento, um momento de resgate da dimensão do servir. Para servir é necessário ser ético. Ser ético, é se colocar no lugar do outro e compreender que você é muito importante para ele, porque o outro espera que você o ame e comungue do mesmo sonho da inteireza da experiência de ser pessoa.