A inveja e o ódio segundo São Tomás de Aquino

Santo Tomás de Aquino

Trad. de Jean Lauand

A gravidade da inveja

De Malo, questão 10 - artigo 2 - A inveja é pecado mortal

Como dissemos, o gênero ou a espécie do ato moral se considera de acordo com sua matéria ou objeto: daí que o ato moral é bom ou mau de acordo com seu gênero.

Ora, a vida da alma é a virtude da caridade [o amor] que nos une a Deus, por quem a alma vive, como diz João (I Jo 3, 14): "Quem não ama, permanece na morte"; ora, a morte é a privação da vida.

Quando, pois, examinando a matéria de um ato, encontramos algo que se opõe a esse amor [a caridade], necessariamente aquele ato é pecado mortal por seu gênero. Por exemplo, matar um homem é algo frontalmente oposto à caridade, pela qual amamos o próximo e queremos que ele tenha o ser, a vida e outros bens, o que é próprio da amizade, como diz o Filósofo (IX Ethic.4; 1166a, 4-5). E assim, o homicídio é pecado mortal por seu gênero.

Quando, porém, o exame do objeto de um ato não revela algo que se oponha à caridade, como, por exemplo, falar palavras fúteis etc., esse ato não é pecado mortal por seu gênero; pode vir a ser pecado mortal por algo que se lhe acrescenta, como discutimos acima (q.7, a.3).

Ora, invejar, pelo seu próprio objeto, implica algo contra a caridade: pois é próprio do amor de amizade querer o bem do amigo como se fosse para si mesmo, porque - como diz o Filósofo (IX Ethic.4; 1166a, 30-32) - o amigo é como se fosse outro eu. Daí que entristecer-se com a felicidade do outro é claramente algo oposto à caridade, pois por ela amamos ao próximo. Daí que Agostinho diga (De vera rel. 47): "Quem inveja a quem canta bem não ama ao que canta bem". Daí que a inveja é pecado mortal por seu gênero.

Deve-se considerar, no entanto, que no gênero de algum pecado mortal pode-se encontrar casos de atos que não sejam pecado mortal porque não chegam a realizar plenamente as características daquele gênero. E isto pode se dar de dois modos: em primeiro lugar, pelo princípio da ação, por não proceder da deliberação da razão, que é própria e principalmente o princípio dos atos humanos. Daí que os impulsos súbitos - até no gênero de homicídio ou adultério - não são pecados mortais porque não atingem a plenitude de atos morais, cujo princípio é a razão. Em segundo lugar, a falha pode proceder do objeto, que pela sua pouca expressão não atinge as características do objeto, por exemplo, de um furto: furtar uma espiga num campo não é pecado mortal, porque é quase nada, tanto para o que pratica este ato como em termos da própria realidade.

Assim, pode acontecer que embora a inveja seja pecado mortal por seu gênero, algum movimento de inveja não seja pecado mortal: pela imperfeição do próprio movimento - como no movimento súbito, à margem da deliberação da razão - ou porque alguém se entristece por um bem do outro que é um bem tão pequeno que nem parece bem: como se, divertindo-se juntos, se invejasse aquele que vence o jogo, digamos, uma corrida ou algo assim.

As filhas da inveja

De Malo, questão 10, artigo 3 - A inveja é pecado capital. As filhas da inveja (murmuração, detração, ódio, exultação pela adversidade, aflição pela prosperidade)

Como dissemos acima, vícios capitais são aqueles que, a título de causa final, geram outros vícios. Ora, o fim tem caráter de bem e, do mesmo modo, a vontade tende ao bem e à fruição do bem, que é o prazer. Por isso, assim como a vontade é movida a agir pelo bem é também movida pelo prazer.

Deve-se também considerar que, assim como o bem é o fim do movimento volitivo de perseguir [prosecutio: tender a um bem para obtê-lo], assim também o mal é o fim do movimento volitivo que é o fugir: do mesmo modo como alguém que quer obter um bem, persegue-o; assim também quem quer evitar um mal, foge dele. E como o prazer é a fruição de um bem, assim também a tristeza é um certo termo do mal que oprime o ânimo. O homem que repudia a tristeza é levado a fazer muitas coisas para afastar a tristeza ou as coisas que inclinam à tristeza.

Ora, sendo a inveja uma tristeza pela glória de outro, considerada como um certo mal, segue-se que, movido pela inveja, tenda a fazer coisas contra a ordem moral para atingir o próximo e, assim, a inveja é vício capital.

Nesse impulso da inveja, há princípio e termo final. O princípio é precisamente impedir a glória alheia, que é o que entristece o invejoso, e isto se faz diminuindo o bem do outro ou falando mal dele: disfarçadamente, pela murmuração [sussurratio, fofoca], ou abertamente, pela detração.

Já o termo final da inveja pode ser considerado de dois modos: um primeiro diz respeito à pessoa invejada e, nesse caso, o impulso da inveja termina, por vezes, em ódio, isto é, o invejoso não só se entristece pela superioridade do outro, mas, mais do que isso, quer seu mal sob todos os aspectos.

De um outro modo, o termo final desse impulso pode ser considerado por parte do próprio invejoso, que se alegra quando consegue obter o fim que intentava: diminuir a glória do próximo e, assim, se constitui esta filha da inveja que é a exultação pela adversidade do próximo. Mas, quando não consegue obter seu propósito - o de impedir a glória do próximo -, então se entristece: é a filha da inveja chamada aflição pela prosperidade do próximo.

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[1] Trechos do livro Tomás de Aquino – Sobre o Ensino (De Magistro) & Os Sete Pecados Capitais, São Paulo, Martins Fontes, 2001.

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A INVEJA E O ÓDIO SEGUNDO SÃO TOMÁS DE AQUINO

A inveja (junto com a avareza) é um dos vícios capitais mais detestáveis. A inveja, in-vidia, invidentia, é não-ver, não querer ver o bem do outro.

AS METÁFORAS DA INVEJA

A inveja é podridão

1. A propósito de Prov 14, 30: "A inveja é a podridão dos ossos", comenta Gregório (Mor. 6, 7): "Pelo vício da inveja, desfazem-se aos olhos de Deus os bons atos das virtudes". (Malo, 10, 2 sc 1) "Sed contra. Est quod Gregorius dicit exponens id quod habetur Prov. XIV, 30: putredo ossium invidia. Per livoris (inquit) vitium ante dei oculos pereunt bene acta virtutum."

Roer-se de inveja

2. A inveja é comparada à traça, que rói ocultamente as vestes, pois dilacera o amor e, por isso, desfaz a unidade. (Cat. Aur. in Matt 6, 14) "Allegorice autem... tinea, quae vestes latenter rodit, invidia est, quae bonum studium lacerat, et per hoc compactionem unitatis dissipat."

3. Roído pela inveja (Super Ev Mt cp 6 lc 5) "Per invidiam corroduntur."

A inveja é tortuosa, como a cobra. A inveja é sombria e tenebrosa

4. Distorcer é entortar o que era reto. Daí que por cobra tortuosa se entendam aquelas criaturas cuja beleza se obscureceu pelo pecado e distorceram sua retidão, principalmente o diabo, por quem a inveja entrou no mundo. De sua tenebrosidade fala Jó : "Dorme em sombras; esconde-se entre as canas". (In II Sent.) "Distortum enim est quod rectitudine obliquatur. Et ideo per hunc colubrum tortuosum creaturae illae intelligi possunt quarum pulchritudo est per peccatum obscurata et rectitudo obliquata, et praecipue diabolum, cujus invidia mors intravit in orbem terrarum, Sap. 3, et de umbrositate ejus dicitur Job 40, 16: sub umbra dormit in secreto."

O fedor da inveja

5. Mas para outros é na verdade odor da morte que leva à morte, isto é, da inveja e maldade que ocasionalmente os conduzem (os invejosos) à morte eterna... "Sed aliis quidem est odor mortis in mortem, id est, invidiae et malitiae occasionaliter ducentis eos in mortem aeternam, illis scilicet qui invidebant... "

O espinho da inveja

6. Outros, porém, espicaçados pelo espinho da inveja... (Catena Aurea in Lucam cp 11 lc 4) "Alii vero paribus stimulati livoris aculeis."

7. Movidos pelo espinho da inveja. (Catena Aurea in Lc cp 7 lc 3) "Invidia stimulante... "

A inveja morde

8. Alguns estavam mordidos de inveja. (Catena Aurea in Mt cp 20 lc 1) "Hoc ut ostendat aliquos esse invidia morsos..."

A inveja é cega

9. Atingidos pela cegueira da inveja. (Catena Aurea in Mt cp 21 lc 1) "Sed invidia caecatos scribas et pharisaeos..."

10. Porque estavam completamente dominados pela cegueira da inveja. (Catena Aurea in Mt cp 27 lc 4) "Quia eos omnino invidia excaecaverat"

A inveja queima

11. Torturados de inveja, queimados de inveja. (Catena Aurea in Mt cp 21 lc 4) "...Invidia torquebantur. itaque non sufferentes in pectore suo invidiae stimulantis ardorem..."

12. A febre da inveja. (Super Ev Mt cp 8 lc 3) "Haec febricitabat, scilicet synagoga, febre scilicet invidiae."

A inveja envenena

13. O veneno da inveja. (Catena Aurea in Mt cp 22 lc 5) "Ex hoc autem intelligimus venena invidiae superari posse, sed difficile quiescere."

O arroto da inveja

14. O arroto da inveja. (Sermones 2, ps 3) "Difficile est quod cor plenum invidia non eructet quandoque aliquid ex illo, quia ex abundantia cordis os loquitur."

A inveja avinagra

15. A inveja é representada pelo vinagre. (Super Ev. Io. cp 19, lc 5) "Mystice autem per haec tria signantur tria mala quae in iudaeis erant: scilicet invidia per acetum etc."

A inveja dói

16. Há certos pecados que são dores, como a acídia e a inveja. (In IV Sent. d 17, q 2, a 1, 5)"Sed quaedam peccata sunt dolores, sicut invidia et accidia."

Outros aspectos da inveja

17. Vejo, mas não invejo... (Catena Aurea in Io. cp9 lc 4) "Video, sed non invideo." (trocadilho de Santo Agostinho)

18. Não há nada mais vil do que a inveja. (Catena Aurea in Io. cp 4 lc 9) "Nihil enim livore et invidia deterius."

19. Freqüentemente os soberbos julgam os outros superiores em muitas coisas, sem no entanto deixarem de se considerar mais dignos delas, por causa dos bens em que os outros parecem superá-los, da própria soberba nasce um zelo de inveja. (In II Sent. d 21 q 2 a 1 r 1) "Unde superbi frequenter alios se superiores in multis aestimant, qui tamen multa sibi magis digna esse cogitant, propter alia bona in quibus alios excedere videntur: et ideo ex ipsa superbia invidiae zelus oritur."

20. (O ódio pode surgir também...) quando alguém por semelhança impede a fruição da realidade amada por alguém que a ama. E isto se dá em todas as coisas que não podem ser simultaneamente possuídas por vários, como é o caso das coisas materiais. Daí que quem ama o proveito ou o prazer de algo, impeça a fruição desse algo por outro que, tal como ele, quer se apropriar daquilo. Daí o ciúme, que não suporta participação no amado, e a inveja, que pensa que o bem do outro é obstáculo para seu próprio bem. (In II Sent. d 27, q 1, a 1, ad 3) "Secundo quando aliquis ex ipsa similitudine impedit amantem ab amati fruitione; et hoc invenitur in omnibus rebus quae non possunt simul a multis haberi, sicut sunt res temporales; unde qui amat lucrum de aliqua re, vel delectationem, impeditur a fruitione sui amati per alium, qui sibi vult similiter illud appropriare; et hinc oritur zelotypia, quae non patitur consortium in amato; et invidia, inquantum bonum alterius aestimatur impeditivum boni proprii."

21. Há certos pecados que se cometem por tristeza, como a acídia e a inveja. (In IV Sent. d 17, q 2, a 2, 1) "Sed quaedam peccata per tristitiam committuntur, sicut acidia et invidia."

22. (Nos condenados do inferno) Agiganta-se o ódio e a inveja, porque preferem ser mais torturados com muitos do que menos torturados sozinhos. (In IV Sent. d 50, q 2, a 1, ad3) " (...) Superexcrescet odium et invidia, quod eligerent torqueri magis cum multis quam minus soli."

23. Só a soberba e a inveja são pecados puramente espirituais, portanto do âmbito possível dos demônios. (I, 63, 2 ad 2) "Sola superbia et invidia sunt pure spiritualia peccata, quae daemonibus competere possunt."

24. Como a inveja se sente da glória de outrem enquanto ela diminui a glória desejada, apenas sentimos inveja daqueles a quem pretendemos igualar-nos ou a quem, em glória, nos preferimos; o que não se verifica quanto aos que estão de nós muito distantes. Com efeito, ninguém a não ser um louco, se empenha em se igualar ou superar em glória os que são muito maiores: não só o rei não inveja o plebeu; também o plebeu não inveja o rei. E, assim, um homem não inveja os que estão muito longe por lugar, tempo ou prestígio; mas os que estão perto - esses são os que incomodam - e aos quais ele quer se igualar ou superar. (II-II, 36, 1, ad 2) "Quia invidia est de gloria alterius inquantum diminuit gloriam quam quis appetit, consequens est ut ad illos tantum invidia habeatur quibus homo vult se aequare vel praeferre in gloria. Hoc autem non est respectu multum a se distantium, nullus enim, nisi insanus, studet se aequare vel praeferre in gloria his qui sunt multo eo maiores, puta plebeius homo regi; vel etiam rex plebeio, quem multum excedit. Et ideo his qui multum distant vel loco vel tempore vel statu homo non invidet, sed his qui sunt propinqui, quibus se nititur aequare vel praeferre."

25. Ninguém inveja o que é possuído comumente por muitos: ninguém inveja, por exemplo, que outro possa conhecer a verdade, o que é possível para todos, mas talvez a excelência desse conhecimento. (I-II, 28, 4 ad 2) "Non autem proprie ex his quae integre possunt a multis possideri, nullus enim invidet alteri de cognitione veritatis, quae a multis integre cognosci potest; sed forte de excellentia circa cognitionem huius."

26. É freqüente que homens que exercem o mesmo ofício se comportem insidiosa e invejosamente entre si. É como diz o provérbio: "oleiro inveja oleiro" e não carpinteiro. (Super Ev. Io cp 3, lc 4) "Nam communiter videmus hic, homines eiusdem artis insidiose et invide se habere ad invicem. Figulus figulo invidet, non autem fabro."

27. Como os soberbos freqüentemente julgam os outros superiores a si em muitas coisas (...) da própria soberba nasce a inveja (In II Sent. d 21, q 2, a 1, ad 1) "Unde superbi frequenter alios se superiores in multis aestimant (...) et ideo ex ipsa superbia invidiae zelus oritur. "

28. Pois diz Gregório: "Quando a podridão da inveja corrompe o coração já vencido, os próprios sinais exteriores indicam quão gravemente o desvario instiga o ânimo: o rosto empalidece, os olhos se abatem, a mente se inflama, os membros esfriam, a imaginação se enraivece e os dentes rangem". (II-II, 36 , 2, 4) "Dicit enim Gregorius, V Moral., cum devictum cor livoris putredo corruperit, ipsa quoque exteriora indicant quam graviter animum vesania instigat, color quippe pallore afficitur, oculi deprimuntur, mens accenditur, membra frigescunt, fit in cogitatione rabies, in dentibus stridor."

29. Há pecados que se cometem não para ganhar algo, mas só para destruir, como é o caso do homicídio, da inveja e outros que tais (In II Sent. d 35, q. 1, a5 ex). "Aliquod enim peccatum est quod est ad corrumpendum, et non ad aliquid acquirendum, ut patet in homicidio et invidia, et hujusmodi. "

30. Da inveja nasce o ódio (II-II, 34, 6, c) "Ex invidia oritur odium."

31. A ira pode ser boa ou má; ao contrário da inveja, que basta nomeá-la, e já soa como algo mau. (II-II, 158, 1 , c) "Et ideo invidia, mox nominata, sonat aliquid mali, ut Philosophus dicit, in II Ethic.. hoc autem non convenit irae, quae est appetitus vindictae, potest enim vindicta et bene et male appeti."

32. A inveja, em geral, procede da soberba. Com efeito, a tristeza pelo bem alheio dá-se no homem porque aparece como obstáculo à própria excelência. (De Malo 8, 1, ad 5) "Invidia, ut in pluribus, ex superbia oritur; propter hoc enim homo maxime tristatur de bono alterius, quia est propriae excellentiae impeditivum."

33. Os pusilânimes são propensos à inveja pois, como se diz no livro de Jó, a inveja mata os pequenos. E isto com razão, pois o medíocre acha que a prosperidade de outro impede a sua: o que é próprio de almas pequenas. (In Iob cp 5) "Quidam vero sunt pusillanimes et hi proni sunt ad invidiam, unde subdit et parvulum occidit invidia, et hoc rationabiliter dicitur: invidia enim nihil aliud est quam tristitia de prosperitate alicuius inquantum prosperitas illius aestimatur propriae prosperitatis impeditiva; hoc autem ad parvitatem animi pertinet."

34. Fugir dos olhos do invejoso, evitar que seu olhar caia sobre nossas acções. (Super Ev. Io. cp 5, lc 2) "Ut declinemus et fugiamus oculos invidorum ab omnibus operibus nostris."

35. A inveja como espírito de competição. (Super I Ad Cor. cp14 lc 1) "Et ex hoc consurgit aemulatio, quae est invidia."

36. Quem odeia, olha com olhos maus e invejosos a quem odeia (Catena Aurea in Mc cp 7 lc 2) "Nam qui odit, oculum malum et invidum habet ad eum quem odit."

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 17/10/2009
Reeditado em 25/10/2009
Código do texto: T1871838
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