Mizifio, do jeito que suncê tá, só o homi é que podi te ajudá.

Viagem a Terra do Nunca (Mizifio, do jeitu qui suncê tá, só o homi é que podi te ajudá)

Corria o ano da graça de Março de 1970...

A vida em São Paulo, para mim, representava um espanto atrás do outro: uma enormidade de veículos como jamais eu havia imaginado, uma fartura de arroz servido nas refeições até então desconhecida para mim, já que no Nordeste a farinha de mandioca é a base da culinária, e isto sem falar do onipresente garoar. Era tal a certeza de que haveria garoa que saíamos de casa pela manhã com sol, mas já levando um guarda chuva, na certeza de que o tempo não se manteria estável durante o dia inteiro.

Depois de uma curta e turbulenta estadia com meu tio Detinho, (Irmão de minha mãe) todos a nos comprimir em um quartinho de cortiço no subúrbio de Presidente Altino, no qual moravam três adultos, e em cujo espaço um já seria demais, (um tempo þem que me fartei de comer rins bovinos temperados e cozidos de forma abaixo de bisonha, pois meu tio não havia captado e assimilado os lendários dons culinários da família) fui morar com a minha tia, da Glória, (batizada Maria da Glória, mais uma na enxurrada de Marias) na cidade de Carapicuíba.

Como eu estava firmemente decidido a permanecer em São Paulo, não seria o pequeno desentendimento com o meu tio (Na verdade, um arranca-rabo provocado pela gororoba que ele servia diarianoite) que me faria bater em retirada para o Nordeste.

Então, para ocupar o meu tempo livre, fui trabalhar como ajudante, uma espécie da faz-tudo, de "seo" Manoel, um velho sergipano como eu, exímio furador de poços das redondezas.

Eu me divertia observando o "seo" Manoel descansando depois do trabalho árduo de escavar os poços, dormitando ao sol, bem perto do poço que estávamos furando a terra salitrosa de Carapicuíba: o velho sergipano deitava-se sobre o chão acolhedor, colocando as suas roupas como travesseiro e adormecendo quase que de imediato.

O melhor da festa vinha quando o "seo" Manoel pegava no sono; era como se uma locomotiva estivesse passando ao lado, tais eram os roncos que dali saíam. De quebra, como pra melhorar a sonoplastia, ainda tinha o apito do trem: vários silvos longos que escapavam por entre falhas da dentadura do velho poceiro.

Depois de mais ou menos uma hora "seo" Manoel acordava, sacudia a poeira do corpo e voltava para o poço na maior tranqüilidade, inconsciente da tremenda barulheira que fizera enquanto dormia.

Era muito interessante ver o poço sendo aberto, mostrando as diferentes camadas de terreno até que a água jorrasse em seu interior,primeiro timidamente, e depois farta como o leite saindo das tetas de uma cabra bojuda. Havia também os poços menores, feitos para servir como fossas, já que não se dispunha de rede de esgoto naquelas paragens suburbanas. Antes da construção dessas fossas tínhamos de tomar muito cuidado ao andar pela mata, (ainda existente próxima das casas, muitas recém-construídas) toda ela salpicada pelos dejetos que os seus moradores, desinibidamente, iam deixando, a maioria deles já acostumada com essas precárias condições de higiene, visto que provinham de áreas rurais muito carentes.

Também era muito divertido ver e ouvir as momices e os causos parecidos ter recém saídos de uma produção de realismo fantástico, contadas por “seo” Marciano, um baiano que já havia morado no Paraná, um exímio contador de histórias, (umas reais, outras nem tanto, como é de praxe entre os contadores de histórias ...) tendo recentemente adquirido um terreno perto da casa de minha tia Da Glória.

Depois de trabalhar alguns dias com o “seo” Manoel fui me aventurar numa construção próxima, aonde se construía um conjunto residencial. De lá só me lembro da figura soturna do “gato”, o sujeito que subempreitava os serviços da construtora, além dos arranhões em minhas mãos, causados pela corda de erguer massa, suplício que abandonei com cinco dias, sem nunca ter sido remunerado pelo tremendo desgaste sofrido.

Com tantas nuvens carregadas em meu horizonte nem percebi a fresta de sol representada pela presença refrescante de Toninha, irmã do pedreiro Raimundo, ambos também nossos vizinhos.

Raimundo e Toninha moravam com a mãe deles, uma senhora viúva já adentrada em anos. Toninha era uma mineirinha muito bonita, com grandes olhos cor de mel e suaves cabelos castanhos, cortados em estilo masculino, uma revolução para a época. Passamos, Toninha e eu, a ser inseparáveis, sendo que, enquanto ela ia me apresentando os recantos desconhecidos da redondeza, Toninha também me ensinava alguns pontos de umbanda, truque que encobria o nosso namorar sozinhos no quarto fechado da casa dela, um namoro juvenil entremeado de doces ritmos animistas. Sua mãe jamais desconfiou de coisa alguma; chegávamos à sua casa e ela já se adiantava e dizia: “mãe, não deixa ninguém nos incomodar. Vou preparar um trabalho forte prá ajeitar a vida do João”.

Depois dessa advertência dada a boa e velha senhora, Toninha se aproximava de mim com meneios sensuais e braços que mais pareciam tentáculos.

Ela então se punha a dançar, puxando cantos que eu acompanhava da melhor maneira que podia, o olhar preso ao balançar enlouquecedor de seu corpo, os quadris dela ondulando de um jeito magnético: ora suave, ora frenético...

Então, de repente, como uma serpente que havia dominado um passarinho, ela parava aquela diabólica dança, e vinha se deitar comigo na cama em que ela dormia, a me iniciar nos mistérios da sedução...

Depois de algum tempo nessa vidinha morna meu tio Moisés me arranjou trabalho na empresa em que ele trabalhava, a Tintas União, resultando daí que os meus encontros com Toninha foram diminuindo, até que nos distanciássemos irremediavelmente, nos perdendo nas pesadas dobras do tempo.