Escrever

A escrita é uma distracção. Mas não evidente, nenhuma certeza a escrita acolhe sob qualquer perspectiva. A possibilidade de narrar quando os limites da narração enunciaram o seu fim. Como? O que fica por estas margens aonde as palavras já não podem ir? Como viver o inexprimível, como traduzir o silêncio na língua que ainda vibra? Como?Dizer, numa aproximação ao vazio, o próprio vazio no seu imperativo categórico. Quase a verdade diante de mim, como dizia Kierkegaard, mas não é a verdade, é a sua ausência, a possibilidade feliz da verdade se ausentar, o vácuo dessa morada que ninguém partilha. O não-dito num primeiro patamar. Uma luz como uma sombra. Corredor de múltiplos sentidos. E outro patamar e outro patamar. E outro. O edifício não apenas imaginário. A sombra como a luz. Talvez a metafísica. Adorno dizia, lembro-me, a própria pastilha elástica é já metafísica. Um patamar se abre pelo horizonte, a realidade se apresenta exposta ao olhar. O olhar capta e transforma as ondas visuais em realidade. Imagino. O que seria o nada? Obrigar as palavras ao silêncio. Não haveria silêncio sem as palavras. E, no entanto. As palavras estão diante de mim, isso é o mundo. Aparentemente, chegamos depois do mundo. O mar está lá. As árvores. Um dia enevoado. “O quadro sucessivo das imagens externas”, afirmava Álvaro de Campos. Estava a mágoa. O rosto da angústia. O esquecimento de alguém. Sei que a memória se lembrava de si. Penso que o futuro aguardava o próximo Verão. Existia o riso, tardes para lábios se tocarem. Um corpo estendido sobre outro corpo. Sei da morte. Sei do absurdo, da filosofia, a literatura, de todos os nomes póstumos. A vida. A vida é o meu acto, dizer este acto é encená-lo, actuar é exercer o que vai iniciar-se sem nenhuma história prévia. Porque a história é uma construção de palavras. Nietzsche denunciava a necessidade do desmascaramento, “melhorar o estilo significa melhorar os pensamentos”, melhorar as sílabas significa melhorar a vida, ouvir a música feliz num começo triste. Pode ser.

A escrita é uma distracção. Aceito. Aceitaria outras definições.

Todos os outros patamares onde não subi. Os patamares entre a lucidez e o assombro. Há muitas narrativas por inventar até ao inalcançável, a permanente variabilidade do que é possível.

Sejamos claros, chegamos apenas quando existe mundo.

Não há presença do nada. Pelo menos não o captamos. Ou então, há um nada que termina no momento que o não é. Rigorosamente, o nada só no fim. A morte é o fim absoluto. O silêncio das palavras. Qualquer narrativa que fale de uma realidade depois da morte é a narrativa de uma ilusão, felizmente breve.

Querer escrever o nada é ainda escrever, inexoravelmente, escrever para adiar o fim. O nada.