Machado de Assis x Julieta Ladeira: análise comparativa do conto “Missa do galo”

MISSA DO GALO - JULIETA LADEIRA

Desafiada, em 1964, por Osman Lins a refazer o consagrado conto Machadiano, a publicitária e escritora Julieta Ladeira não deixou por desejar em sua paródia de “Missa do Galo”, texto singular e belíssimo, no qual mergulhamos no universo da personagem Conceição, nossa narradora-protagonista.

Trata-se de uma paródia verbal do conto “Missa do Galo” de Machado de Assis. Trabalhando com a intertextualidade a autora reescreve o conto. O conceito psicanalítico de re-apresentação, pontuado por Affonso Romano em “Paródia, paráfrase e cia.” explica muito bem algumas das motivações da paródia de Ladeira:

“A re-apresentação psicanalítica seria a emergência de algo que ficou recalcado e que agora volta à tona. Não é simplesmente algo que está apresentando, mas aquilo que veio ao cenário de nossa consciência nos trazendo informações que estavam ocultas. (...) Uma nova e diferente maneira de ler o convencional.”

Ora, nada mais oculto no texto machadiano do que os pensamentos, a verdadeira “alma” de Conceição. Na versão de Julieta vem à tona, inovadoramente, a voz de Conceição, nos ajudando a entendermos mais e matarmos um pouco a curiosidade com relação a essa personagem tão enigmática.

Segundo as “visões” de Jean Pouillon nesta paródia há a “visão com”, pois a história é contada segundo o ponto de vista da única narradora, ela limita-se saber apenas sobre si mesma e comenta os outros personagens segundo seu próprio entendimento, já que é a partir dela que sabemos dos outros. Nós vemos através de Conceição.

A narradora é posicionada na diegese como autodiegética, pois ela também é a protagonista do conto e também, sob os conceitos de Wayne C. Booth, é dramatizada, pois possui características pessoais próprias.

Focando agora numa análise da paródia segundo Norman Friedman, notaremos que nela há predominância da cena, porque os detalhes são específicos e sucessivos, com diálogos, personagens, lugares e ações detalhadas. Conceição trata-se de uma narradora-protagonista de onisciência seletiva, já que a história é desenrolada diretamente das impressões que as pessoas e os fatos deixam nela, tudo vem através da mente de Conceição. Ela, porém, não tem acesso aos pensamentos das demais personagens, a narrativa é limitada exclusivamente às percepções da protagonista. Neste caso há limitação a um centro fixo e ângulo central.

O olhar de Conceição repousa nos pequenos detalhes do quotidiano e foca nas minúcias da noite, descrevendo de forma bastante sensível o momento que teve oportunidade de ficar a sós com Nogueira. Nesta paródia entramos em um universo de lembranças, narradas por Conceição, seja em suas falas, seja em seus deliciosos monólogos interiores, tão bem articulados, que nos ajudam a ter um aprofundamento maior na mente da personagem.

Um diferencial bastante peculiar é a presença da prolepse, uma alteração da ordem seqüencial dos acontecimentos, antecipando fatos que ainda não ocorreram. Este recurso narrativo fica claro no fim do texto de Julieta:

“inclinava-me para outro, o gerente de nossa firma, com quem me casaria após a morte de Menezes.”

Sabendo que se trata de uma paródia e que todos já devem saber o que acontecerá com Conceição, a autora não perde por mostrar que a personagem já poderia estar a par de seu futuro.

ANÁLISE COMPARATIVA:

As técnicas narrativas do conto original de Machado e da paródia de Julieta são praticamente as mesmas, o grande diferencial é a mudança do narrador-protagonista, que no caso do texto machadiano é Nogueira. Se na paródia víamos o mundo sob os entendimentos de Conceição, no de Machado seguimos o conto sob as interpretações de Nogueira. Esses dois “jogos” de interpretação proporcionam margens para uma análise comparativa bastante interessante.

Apesar dos diferentes pontos de vista e visões de mundo, o resultado será o mesmo: a dúvida do que o outro ficou pensando, de como a noite marcante foi interpretada. Como a onisciência é seletiva em ambos os textos, um personagem não tem como saber essas informações do outro, já que grande parte das suas opiniões ocorrem através de monólogos interiores.

Os diferenciais dos textos estão também nos detalhes. Enquanto que em Machado os romances que aparecem na história são “Os Três Mosqueteiros” e “A Moreninha”, no de Julieta o livro presente é “Os Maias”, que inclusive em um de seus monólogos, Conceição deseja que Nogueira a veja bela como Maria Eduarda.

No conto de Julieta há também a presença de um artista que merece nossa atenção: Debussy, músico e compositor francês do século XIX, cujas obras eram de caráter inovador e a sua vida conturbada por um divórcio. Com um olhar mais atento vê-se muito do músico em Conceição. As composições de Debussy eram conhecidas, superficialmente, por sutis jogos harmônicos vagos e fluidos, que davam impressão de que a música se dissolvia ao decorrer da melodia. A verdade, porém, é que toda essa aparente fluidez e solubilidade era uma tentativa de libertação do tradicionalismo, ele foi bastante incompreendido, porém trouxe uma nova concepção de construção da música. Bem, com certeza isso lembra Conceição e a visão superficial que a sociedade tinha dela, no conto de Machado ela chega a ser chamada de santa simplesmente por parecer suportar a traição do marido de forma tão passiva e complacente, já no texto de Julieta isso muda, pois temos uma visão mais profunda da personagem, ela não é tão complacente assim, apenas envolvia o marido “numa tranqüila atmosfera de ódio complacente” e ainda diz depois que “Um dia o vitral seria quebrado”, ou seja, Conceição sente sim mágoa do marido e se incomoda com a necessidade de ter que parecer ser tão passiva. Julieta coerentemente insere a figura Debussy no texto, para sutilmente demonstrar a questão da incompreensão da sociedade com relação a Conceição.

Na noite em que Conceição e Nogueira ficam a sós, através dos textos temos oportunidade de contemplar as opiniões de um com relação ao outro. Na paródia a personagem principal mostra uma verdadeira paixão pelo garoto, pois além de tudo, os olhares dele para ela a fazia sentir mais mulher, desejada e atraente. Nesse jogo de paixão Conceição cuida por agradá-lo de todas as formas possíveis, inclusive se arruma para ele e pensando nele. Com Nogueira ela reencontra o ardor apaixonado, a feminilidade e sedução perdida com as indiferenças de Menezes. No texto de Machado de Assis, Nogueira se mostra envolvido pelo aparente clima de sedução, porém, ao mesmo tempo, fica extremamente confuso por não entender as atitudes de Conceição, pois nunca havia visto ela tão linda, inquieta, envolvente.

Em ambos os textos há a quebra no final, quando Conceição cai em si e volta a aparentar a mulher vaga e passiva de sempre. No texto de Machado os motivos dessa quebra não ficam claros, e isso é um dos fatos que faz de Conceição tão enigmática, já no texto de Julieta o que acontece é um despertar triste e pesado, ela lembra que é só, ressentida e a sua vida com Menezes vazia:

“Eu estava só, há muito tempo, muitos anos por que não compreender isso mais fundo, uma noite pode ser mais longa do que a vida inteira, odiava aquela voz feminina tagarelante, o ressentimento de mulher medrosa, a maldade atirada contra mil arestas, até contra o fato de ser ele, não outro. Esse acordar, uma esperança, gente passando pela rua, desânimo, gostaria que não tivesse entendido, no dia seguinte sua lucidez me seria desagradável.”

Por ultimo uma questão importante a ser decifrada é a do trapézio no texto de Julieta. Essa imagem já havia aparecido antes em Machado, no livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, eis o trecho:

“Enfim, tive uma idéia salvadora... Ah! Trapézio dos meus pecados, trapézio das concepções abstrusas!”

O trapézio seria uma espécie de visão crítica que Brás Cubas tinha dele mesmo e uma idéia fixa, a do emplasto. A retomada feita pela autora dessa imagem do trapézio foi feita em um momento bastante oportuno da história, pois precede o despertar de Conceição. O trapézio introduz a idéia de autocrítica que Conceição fará, lembrando que naquele momento a vida dela era infeliz ao lado de Menezes e que tudo o que poderia fazer era ser passiva e esperar esperançosa por algo que a tirasse daquela situação.

Érika Bandeira de Albuquerque
Enviado por Érika Bandeira de Albuquerque em 06/05/2010
Código do texto: T2241443
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