"SIMPLESMENTE AMY"

Órfãos de Cazuza, Cássia Eller, Seixas e descrentes com os atuais bem-enlatados, Amy Winehouse hasteia a bandeira da transgressão juvenil não vista desde Elvis, Beatles e Joplin. E dos brazucas Roberto e Erasmo Carlos e sua trupe na década de 1960. Muitas novas vozes tentaram, desde PJ Verve e Corine Bailey Ray a KT Tunstall e Christina Aguilera e, no entanto, a marca underground(1) ou o entalhe madônnico fizeram delas, na incursão ao estilo clássico retrô, soar como variações sobre o mesmo tema.

Amy invade a cena musical sendo a jovem britânica, saída da capital do novo mundo, arrebatando grammies e criando uma legião ao produzir álbuns praticamente retirados da década de 1940. É um paradoxo notar que nenhuma canção de Nat King Cole, BB King, Carole King – todos tendo em seu sobrenome o emblema da majestade – não ocupa nenhum megabyte nos ipods, enquanto Amy resgata a mesma sonoridade do jazz norte-americano em suas canções.

É lugar-comum que a indústria da música veja em sua derrocada íntima – assim como na de outros artistas – um filão comercial, ao estilo misery does love company(2). Supervalorizar as mazelas dos famosos serve como catarse para um público ávido e voyeur(3). Analogamente, várias coletâneas e remasteres de artistas da velha guarda e de mitos de outrora não superam as vendas da moderninha que canta canções dos avós. Mas as vendagens não se creditam ao circo dos horrores.

Ouvir “Frank” e “Back to Black” – os dois álbuns da cantora – de olhos fechados é uma viagem algo sensorial. Assemelha-se à trilha sonora dos filmes passados na sessão Coruja com seus bailinhos de formatura e jukebox. E a voz definitivamente não é de uma branca, mas de uma negra saída do Harlem. Não há nenhum sample, nenhum verborrágico trecho de rap tampouco um refrão chiclete, ingredientes indispensáveis ao ouvido mercadológico. Há apenas Amy com sua voz rasgada.

Qual o segredo para o sucesso Winehouse? O talento é indiscutível. E sua figura contribui para criar uma imagem impactante. Lábios carnudos acentuados pela cor avermelhada do batom, maquiagem ao estilo egípcio e um corte de cabelo que ostenta coques enormes numa engenharia capilar espetada por um broche afetadamente romântico, a dona da voz ainda é anoréxica e alcoólatra. A receita cênica não é nova a exemplo do Kiss, Boy George, Village People e dos nossos Dzi Croquete e Secos e Molhados. A diferença está nas canções nas quais os dramas pessoais impregnam a letra, o arranjo e os concertos. E em alguma velada comunicação extraordinária, direta e exclusiva com os seus contemporâneos.

Onde as linearidades, a padronização, os delimites, a simetria e os prefixos mono, uni e hetero são valorizados não se espanta a rápida inclusão de Amy no hall dos ídolos jovens juvenis. Acostumados com o rótulo de geração decadente e tantos outros de igual teor, uma figura feminina, constantemente ébria, mal suportando as pernas o peso do próprio corpo, bebendo alcoólicos e caindo no palco, alvo dos paparazzi nos seus piores momentos, Amy redime a si e à sua geração quando solta a voz. E mesmo a crítica se rende.

Ela ainda domina a pauta das discussões para muito além do botão play. Seja como cantora ou pessoa pública ou simplesmente uma jovem, fala-se sobre ela com intimidade, teorizando suas letras e justificando seus atos. E como todo artista que atinge o estrelato saído do mundo underground, despertou o interesse dos cults.

É ainda muito cedo para tê-la como marco, mas não o é para tê-la como fenômeno. Como explicar a música feita sem os artifícios de um grande show pop, varrendo todo o apelo de massificação e do instantâneo gosto popular (mundial!) e a revitalização do cenário musical jovem? Humanamente fragilizada e, no entanto, visceral em sua música, Amy Winehouse é uma artista que tem a obrigação de se manter viva para o bem de toda uma geração, principalmente brasileira.

(1) Diz-se de tudo o que é diferente do padrão, do socialmente aceito.

(2) Dito popular inglês equivalente a "uma miséria nunca vem sozinha"

(3) Diz-se do indivíduo que gosta de observar a intimidade alheia