OVÍDIO I/ EXERCÍCIO 1

OVÍDIO, Públio Naso. Metamorfoses. Excertos traduzidos por Bocage. Coleção A obra-prima de cada autor. São Paulo/SP, Editora Martin Claret Ltda. 2006.

Públio Ovídio Naso (nasceu em 20 de março de 43 a.C. – Sulmo, atual Sulmona, em Abruzos/Itália; e falecido em Tomos, depois Constança/Romênia, no ano 17).

Este texto lança apenas um olhar apaixonado e exercita um comentário sobre a obra Metamorfoses, do incomparável artista da poesia latina, inspirador de tantos outros tão grandiosos quanto ele.

A leitura livre dos versos de Ovídio causa, de imediato, um suave impacto e a sensação de se estar ao lado do poeta, tamanha a sensibilidade que faz emanar de sua poética _ mesmo considerando-se que o texto exige do leitor conhecimentos específicos, uma bagagem de informações adquiridas em outras fontes.

O texto de Ovídio em foco são excertos traduzidos pelo poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, o árcade pré-romântico nascido em Setúbal/ Portugal (1765).

A epígrafe do tradutor logo resplandece na abertura do seu trabalho de passar para a língua portuguesa os versos escritos por Ovídio em língua latina: “Entre ferros cantei, desfeito em pranto:/Valha a desculpa, se não vale o canto”. São linhas de um encanto insuperável das quais não se consegue imediatamente sair, pois que ficam a espalhar musicalidade na mente e no espírito de quem as lê.

A tradução de Bocage é acompanhada de notas explicativas e, até nessas notas, está registrado o seu espírito forte, polêmico, atual e desafiador:

Sem nenhum vingador, sem lei nenhuma: aos gramáticos escrupulosos, que talvez queiram que este verso antes seja “Sem algum vingador, sem lei alguma”, respondo que usei o idiotismo de nossa língua, alentado com o exemplo de Leonel da Costa na tradução das Bucólicas e Geórgicas, e com outros autores de boa nota. [Nota de Bocage.] (p. 19 da obra consultada).

Seria necessário comentar a nota de Bocage?

Quando são destacadas passagens de Ovídio, em Metamorfoses (Livro I, 5-437), encontra-se o marco zero, ou seja, o nada antes da Criação. O que não havia. Mas, a preocupação dele não é mesmo a filosófica. O poeta latino esbanja, além da inspiração (entranhada à técnica, submetida, escrava da sua poesia), a passagem das absolutas trevas para a luz multicolorida do quadro inicial da Natureza que era,

“Antes do mar, da Terra, e céu que os cobre/ Não tinha mais que um rosto a Natureza:/Este era o Caos, massa indigesta, rude,/E consistente só num peso inerte.”

Adiante se encontra a narrativa do Fiat Lux, na concepção do poeta Ovídio e, extasia o apreciador de sua poesia a propriedade com a qual ele desperta as luminosidades primeiras do maior ato criador em todo o esplendor quando “Assim depois que o Deus (qualquer que fosse) /O grão corpo dispôs, quis dividi-lo, /E membros lhe ordenou.”

Nota-se a noção de um Deus ligado à Física, quando o poeta exclama, assim como se ao lado daquele imaginado Criador estivesse, registrando o ato criativo:

“O universal Fator também dissera:

‘Descei, ó vales, estendei-vos, campos,

Surgi, montanhas, enramai-vos, selvas!”

Após a definição, enfim, de feições do Universo e da Terra, da conformação das estrelas que se encontravam opressas, abafadas, foi a vez dos peixes e das aves.

Igualmente inspirado, o poeta brasileiro, Vinícius de Morais, escreveria, séculos à frente de Ovídio, O dia da Criação:

III

“Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.

De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas

E depois, da separação das águas, e depois da fecundação da terra

E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra

Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.

Na verdade o homem não era necessário

Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres com as plantas, imovelmente e nunca saciada

Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.

De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas

E depois, da separação das águas, e depois da fecundação da terra

E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra

Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.

Na verdade o homem não era necessário

Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres com as plantas, imovelmente e nunca saciada

Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.”

Quanto ao aparecimento do ser humano na fabulosa cena descrita por Ovídio, surge o homem em posição de superioridade, tal qual na Bíblia, esse ser receberia a mensagem para dominar entre todos os outros.

Seria aquele “da mais alta inteligência”, advindo diretamente da “suprema Origem”, ou da própria Terra _ “(...) ; porém ao homem/ O Fator conferiu sublime rosto,/Erguido para o céu lhe deu que olhasse.”

Em Ovídio os humanos surgem “incógnitas figuras” na “idade de ouro”, “Sem nenhum vingador, sem lei nenhuma/Culto à fé, e à justiça então se dava, Ignorava-se então castigo, e medo;”

Observe-se, na tradução de Bocage, a repetição do advérbio -então, que, certamente, exigentes e ranzinzas professores da norma gramatical cairiam sobre, tendo em vista a repetição próxima.

No sonho ovidiano “Nem armas, nem exércitos havia:/Sem ele os mortais de paz segura/Em ócios inocentes se gozavam.”

Nesse Paraíso, a terra era virgem e espontaneamente generosa, plena de frutos e infinita primavera. Nos rios corriam “o leite, o néctar”.

***

Nota da autora: no próximo texto continuaremos com Ovídio a partir do momento em que “foi Saturno exterminado”.