Peixes: LIBRAS e linguística

Falamos. E esse emaranhado de vozes e ideias e histórias faz nossas vidas se movimentarem e tornarem-se maiores do que nós mesmos. Falar é muito mais, é um meio de afirmarmo-nos como indivíduos, como donos de nosso próprio olhar. Falar, para a grande parte das pessoas, é algo inerente à vida, algo tão automático que não conseguimos distinguir o que é falado, contado, escrito do que é vivido. Partes de nossas vidas só existem no âmbito da língua, na verdade, não são mais do que palavras. Nossas juras de amor, nossas mentiras deslavadas, nossas promessas descumpridas não seriam possíveis sem nossas palavras, parte de nossas vidas seria impossível. Então, não é absurdo dizer: o homem é corpo, alma e palavras. Ele é por excelência o ser que fala, que mora na linguagem, como o peixe mora na água (BRUZZI, 1990, p.235).

Será que existe algum peixe que não saiba nadar? É certo que há. Há aqueles que possuem alguma limitação que os impede de mergulhar por completo no mar da língua e eles ficam à deriva, privados de seu próprio mundo. Além desses, há pessoas e peixes que aprenderam a nadar de outras formas e mergulharam de maneira diferente. Entre essas pessoas estão os surdos e sua brilhante língua de sinais. A surdez acarreta uma dificuldade bastante sensível na aquisição da língua materna. Um processo que normalmente acontece de forma natural, acaba tornando-se impossível de se concretizar segundo as condições habituais. Embora possuam o que se chama de capacidade inata para a linguagem (LOBATO, 1986, p.399, apud CHOMSKY, 1957), aos surdos falta o sentido, a audição, que seria responsável pela exposição do indivíduo à língua, exposição que acarretaria à aquisição natural da linguagem. Por isso, é improvável que uma criança surda venha a internalizar uma língua da forma convencional. É exatamente nesse ponto que aparece o impressionante drible da língua de sinais. Não há ouvidos, mas há olhos e para as vozes ainda difíceis de serem articuladas, há mãos.

Mas o que essa mudança significa? Talvez, signifique mais do que podemos imaginar. Mesmo para um surdo que tenha a LIBRAS (Língua brasileira de sinais) como sua primeira língua, a alfabetização é um grande desafio. Para compreender isso é preciso ter em vista que a LIBRAS é uma língua de apenas uma modalidade, ainda não é possível escrever em LIBRAS. Tendo isso em vista, um surdo é capaz de se comunicar em LIBRAS, da mesma forma que os ouvintes comunicam-se usando a modalidade oral do português, no entanto o surdo precisará redigir e ler na modalidade escrita do português, uma língua diferente que se sustenta em outro paradigma, no som. Essa diferença de paradigma fica clara quando contrapomos a constituição do signo linguístico do português e da LIBRAS.

Segundo Eagleton (2006), apoiado em Saussure (1916), as línguas são sistemas abstratos de signos e todo signo compreende duas faces. Uma delas é a impressão sonora da palavra, a combinação dos sons que são pronunciados quando se fala aquela palavra, e uma face de significado, de sentido que é evocado pela impressão sonora. Esse par, significante e significado, compreendem, portanto, uma representação de um objeto, um ser, um fato, um sentimento. Em uma língua de sinais, o significante que compõe o signo é de outra categoria, pois os surdos não têm acesso a uma impressão sonora, por isso, em vez dela, há uma imagem quirêmica. Essa imagem consiste no sinal que equivale ao significado pretendido. Sinal que se constituiu de uma série de parâmetros, como, por exemplo, configuração das mãos, direção do movimento, ponto de articulação. É essa imagem quirêmica que permite aos surdos alcançarem os significados que, por sua vez, referem-se a elementos reais do mundo. A substituição do elemento sonoro da formação do signo, por um quirêmico permite aos surdos suplantar os limites da perda auditiva, no que diz respeito à capacidade de elaborar pensamentos mais abstratos e complexos. Dessa forma, reconhece-se a grande importância da LIBRAS para o desenvolvimento cognitivo dos surdos, pois ela se torna a expressão de seus pensamentos, assim como ocorre com os ouvintes e o português. (LOBATO, 1986, p.48).

Depois de ter essa diferença em vista, fica mais fácil compreender a dimensão do desafio de um surdo ao lidar com um texto escrito em português. Para alguém ouvinte, a tarefa não é das mais simples. É sabido que a modalidade escrita do português não é uma fiel representação da fala, há inúmeras particularidades, no entanto as duas modalidades não são completamente diferentes. Há certa correspondência entre elas (BAGNO, 2006, p.204). Os métodos convencionais de alfabetização aproveitam-se dessa correspondência para que as crianças sejam capazes de estabelecer conexões entre a representação gráfica de uma palavra e sua imagem sonora. Embora não seja perfeita, essa conexão é viável e, em alguns casos, até intuitiva. No caso de uma criança surda, esse processo não é tão simples. A representação gráfica de uma palavra precisa ser conectada a uma imagem quirêmica e essa conexão é completamente arbitrária, não há nenhuma correspondência entre os dois elementos da conexão. Além disso, eles são de categorias inteiramente diferentes.

Apesar de tantas diferenças, uma questão ainda não foi respondida: o que essa mudança significa? Talvez seja possível respondê-la de várias formas. E cada uma revela um leque de mudanças, que parecem pequenas diante da grande mudança que uma das respostas é capaz de suscitar. Há mudanças essenciais no que diz respeito ao sistema linguístico, a LIBRAS é uma língua própria com suas particularidades estruturais. Há também mudanças no âmbito das funções cognitivas, pois a LIBRAS passa a constituir a expressão do pensamento dos surdos. Além dessas, há mudanças no que diz respeito à interação e, certamente, essas são as mais importantes e urgentes. Uma língua é uma estrutura, é expressão de pensamentos e, sobretudo, é via de interação, de comunicação (BAKHTIN, 1986). E nesse sentido, a LIBRAS representa um importante encontro, uma encruzilhada de pessoas, como uma corrente que leva ao mar. Talvez, falar seja o mesmo que nadar e não importa como nadamos ou falamos, nem se entendemos olhando ou ouvindo, se são línguas ou dedos. Felizmente, falamos.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguístia. São Paulo: Contexto, 2005.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.

BRUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem. Petrópolis: Vozes, 1990.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LOBATO, Lúcia M. P. Sintaxe gerativa do português. Belo horizonte: Vigília, 1986.