Sobre os escritos curtos

SOBRE OS ESCRITOS CURTOS

Julho/2010

Estipulei meu primeiro escrito oficial como "Sonho e culpa", de 2008, muito embora eu já tivesse acumulado pilhas de papéis datilografados, folhas soltas e blocos com anotações ilegíveis ao longo dos anos.

Carreguei comigo as anotações em caderno deste que seria meu primeiro romance. Ainda hoje, guardo seus manuscritos como fiéis testemunhos daqueles tempos.

Minha maior dificuldade foi levá-lo adiante. Não por falta de entusiasmo, interesse ou empenho, mas por reconhecer que era incapaz – ao menos àqueles tempos – de ser meu próprio espírito que desencarna, vendo a tudo de cima, percebendo o quadro geral daquilo que se elabora.

Desde pequeno, à mesa eu ouvia um ditado popular, sempre que não me era possível terminar de comer tudo o que havia pedido: "os olhos foram maiores que a boca". Em "Sonho e culpa", cometi um erro semelhante: o sonho foi maior que a capacidade de torná-lo real.

Ingênuo, eu acreditava que instantaneamente dava a mim mesmo a possibilidade de estar próximo de um Dostoievski, fazendo com que 500 páginas fossem escritas e finalizadas em questão de dias.

Parece-me que depois de certo tempo, eu era tomado por uma ansiedade aguda. Ao escrever, temia pelo cansaço e pelo sono. Bem o sabia que se o pausasse, desejando dar continuidade no dia próximo, algo em si morreria. Mas fato é que não era um Kafka, tampouco um Dostoievski. Mesmo sem indicativos dos quais eu poderia ter consciência plena, no fundo toda minha irregularidade e falta de disciplina parecia me encaminhar em direção aos escritos curtos, nos anos seguintes. Aprendi a aperfeiçoar o que outrora me era um grande defeito.

Não bastando a pretensão de logo dar fim ao que era realizado, notei que o senso crítico para com os meus próprios escritos parecia até mesmo absurdo. Eu, que tanto chegava a me desanimar ou até mesmo ficar desapontado, em outros tempos, com pessoas próximas que reprovavam meus escritos, passava a ser o meu próprio carrasco. Quanto mais desejava avançar, mais queria apagar e reescrever. Quanto mais pensava em um final, mais as páginas se diminuíam.

Naturalmente que o fundo inspirador de toda história ganhava a cada dia uma complexidade maior. Irresponsável fui eu, ao não saber conciliar anotações sobre os acontecimentos reais com aquilo que eu pretendia expressar. Parecia-me uma tarefa árdua escrever sobre algo do qual eu era testemunha, protagonista, diretor e maior expectador.

Um problema de outra ordem também me acompanhava. Tal qual meu comportamento, meus pensamentos estavam tomados pela mesma irregularidade e indisciplina. Escrever requeria uma paz com a qual eu pouco convivia. Reescrever o primeiro capítulo automaticamente me trazia idéias do que poderia ser modificado em um parágrafo específico dos capítulos à frente. Assim como não se constrói uma casa por todas suas partes de uma vez só, o mesmo ocorre com os escritos. Não que seu construtor esteja impedido de ser tomado por novas idéias, mas lhe é necessário se concentrar em cada cômodo. Um projeto era tudo o que eu necessitava, onde deveria ter em mente onde começar e terminar. Uma escaleta, na linguagem teatral.

Eu parecia estar mais preocupado em mostrar meus esboços a pessoas próximas que levar meu romance adiante, na forma com que deveria ser feito. Vivia, na verdade, uma crise interior. Como tudo era capaz de mudar em questão de dias! Um parágrafo era relido após semanas e meu rosto avermelhava-se: "Como fui capaz disso?". Àquelas horas, eu ainda não havia sido consolado por Rilke.

"Cartas a um jovem poeta" foi um marco em minha vida. E, acima de tudo, uma mão que pousou sobre o ombro de uma alma artística inquieta e insegura. Quando o ainda jovem Franz Kapus lhe escreve e pede uma opinião sobre seus poemas, Rilke lhe diz que, no fundo, tudo o que dissesse a respeito não deveria ter mais importância que a do próprio autor; ele bem sabia as circunstâncias que o levara a escrever e, acima de tudo, com o quanto de honestidade o havia feito.

Repensei minha sinceridade. Não consistia em nenhum crime ter sido levado por um misto de precipitação e euforia, quando, por algumas vezes, enviei ou entreguei cópias do meu primeiro romance a pessoas próximas. Antes de Rilke, eu era tomado por um sentimento de culpa ou de uma vergonha próxima de uma obscenidade da qual se tem arrependimento. Pensava: "Como fui capaz? Não é possível que em eu tenha exigido tempo para que outros lessem aquilo que eu, hoje, já não consigo aceitar...". E, contudo, com todos os meus erros e toda a má distribuição de idéias, ouvi bons comentários.

Considero como uma grande sorte – ou, à vontade do leitor, uma intervenção da Providência – que mesmo em meus pecados e precipitações escritas e musicais, obtive aprovação, sobretudo no que diz respeito àquela pessoa a quem me inspirei e fiz, a meu lado, de protagonista de uma história escrita e vivida. Que fator significativo! Que realização! Nem Goethe em sua época tivera tamanha realização! Criar uma sinfonia para uma estrela que acompanhou o nascimento de cada melodia, seus primeiros passos e quedas. É inegável: fui privilegiado. Um abençoado. Um presenteado pelos deuses. E apesar de iluminado pela estrela a quem reservei cada vírgula, cada trecho do que criei, também considero uma grande dádiva sempre acreditar que era possível fazer melhor.

As coisas parecem ter sido postas em meu caminho para que cada vez mais eu nunca desse fim às minhas atividades. A grande maioria das pessoas a quem entreguei em mãos ou enviei por conta meus escritos referentes ao "Sonho e culpa" sempre se mostrou generosa. Isto me motivou, sem ter criado em mim mesmo o conformismo de que aquilo era o suficiente.

Nunca poderia esquecer, por exemplo, as palavras de Helena Rocha, grande e querida amiga, professora da língua francesa e tia da minha grande amiga Luciana Rocha. Quando, por intermédio desta, deixei-lhe alguns trabalhos de piano e uma encadernação do meu “primeiro erro”, recebi uma amável mensagem, à qual ainda em alguns anos, enquanto eu viver, deverei recorrer com carinho e pensar naqueles bons tempos de 2008:

“Newton

Difícil um jovem citar Heidegger.

Aliás, é difícil um jovem, tão jovem, possuir idéias definidas, escrever coisas profundas em uma linguagem coloquial.

Não posso imaginá-lo num momento fútil, naquela descontração usual, tão comum nesta fase da vida. Um amadurecimento precoce é um acontecimento único, um dom, uma Graça.

Vejo-o como alguém que já viveu muito, anos percorridos em caminhos vários, talvez sem precisar se deslocar muito, porque, para as pessoas sensíveis, o mundo está dentro de si mesmo, sensações todas arquivadas.

O mundo que me refiro está perto, compactado, está em si, nas fibras e nos nervos e transita em seu sangue fluindo, acontecendo, sem interferências de informações externas.

Você sabe das coisas sem esforço, porque as informações estão inerentes em seu ser.

Daí a sua capacidade de compreensão do mundo e das pessoas.

Você é altruísta e generoso.

Que bom que você existe!

Preserve-se, você poderá fazer pessoas felizes e realizar mudanças sociais.

Com sua música, com suas palavras, com sua beleza interior.

Um grande abraço,

Helena

P.S: Naquela ocasião, Heidegger não tinha nada a dizer, daí o seu silêncio.

Por ocasião do sexagésimo aniversário de Thomas Mann, em 1.935,

Freud tinha algo a dizer:

‘Formular votos é trivial e me parece uma regressão à era em que a humanidade acreditava na onipotência do pensamento. Só desejo expressar a confiança em que você nunca faça ou diga nada - afinal as palavras de um escritor são atos - que seja covarde ou vil’.

Esta belíssima profissão de fé sobre a integridade eu gosto de passar adiante para todos aqueles que, como você, gostam de escrever”.

Quanto mais entregava meus trabalhos a alguém, quanto mais os entrego, mais desejo mostrar-lhes o que faço de novo, pois, ao fim, pareço nunca estar de acordo com o resultado da própria sensibilidade. Tem-se a sensação de que quanto mais recente, melhor é, como aquilo que se acaba se cozinhar.

Chegava então a época em que eu deveria me inscrever para o concurso de literatura local. Dei por encerrada ao menos a primeira parte do romance, “por uma nobre causa”. O fim que tanto imaginei acabou por ser mudado. Atuei por precipitação, sem dar peso à consciência. Por acreditar que havia um tempo para se dar um fim ao escrito, era aquela minha melhor oportunidade.

Depositei todas as minhas expectativas em um envelope. Por um instante, deixei-me contaminar pelo sonho de uma premiação, com a árvore de uma semente que eu recém havia plantado. Também reconheço que ainda, àquele tempo, eu não havia estado em contato próximo com a sabedoria hindu, em especial com o Bhagavad Gita e toda sua proposta em torno da renúncia. Desconhecia a este espírito, a este estado de natureza nobre.

Depois de tê-lo feito, não houve em um só dia nos dois primeiros meses em que eu não deixasse de receber uma notícia sobre sua premiação. Sonhei com um status. Este foi meu defeito gravíssimo. Meu erro de criança.

Somente com o atraso da classificação e com a releitura que eu fazia do próprio romance, o qual eu havia canalizado minhas esperanças, pude amadurecer e compreender que, de longe, eu não era merecedor de prêmio algum, sequer uma menção honrosa ou qualquer lugar de destaque.

Lentamente foi possível compreender que à parte da expectativa natural que emana de concursos como esse, deve-se encarar a tudo como uma simples tentativa ou um mero risco que se corre. E que independente do seu resultado, o mais importante está no amor que se tem pela arte. Com ou sem concursos. Com ou sem premiações.

Arrisquei a escrever também um conto para este concurso. Até então, nunca o havia feito. "Renovação existencial" era o seu nome. Quatro laudas. Ao final, dizia que seu personagem, Pawelr, "engrandecera à experiência de dificuldades que com esforço fora capaz de suportar e superar” e que “trocava por mais uma vez, sem que pudesse perceber ou mesmo compreender, suas próprias escamas como fruto da maturidade que alcançara”. A renovação existencial passava a ser a seu ver, “a mais recompensadora forma de presentear seu espírito, que tendo derramado a essas escamas da experiência, desperto e intocável, deleitara-se com a poupa das mais saborosas laureias da vida".

Com isto, acreditei que aos poucos, junto a novas leituras, eu passaria a me identificar com escritos curtos, mais especificamente com contos e ensaios, onde, tal como propõe Borges, é possível ser momentâneo e econômico. Cada palavra sua pode ser essencial. Difere-se do romance, que às vezes exige um grande esforço para se ler e escrever. Às vezes nós nos adequamos às nossas próprias incapacidades. Assim eu o fiz em relação aos escritos.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 08/07/2010
Código do texto: T2364979