INTERTEXTUALIDADE E RELAÇÃO INTERSEMIÓTICA NA OBRA MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS – MACHADO DE ASSIS

Existem dois tipos de códigos estéticos que podem transformar o mundo em um verdadeiro e original discurso pela narratividade. Tais códigos dizem respeito à literatura de ficção e a filmagem fictícia. Apoderando-se da imagem, o cinema torna objetiva e até mesmo personifica, presentificando e atualizando o que está sendo utilizado como referencial para o seu roteiro ou enredo de produção cinematográfica.

Pretendemos com este sucinto estudo obter uma melhor compreensão da obra de Machado de Assis “garimpando”, por assim dizer, os elementos literários que estão presentes na figura do personagem Brás Cubas, através da leitura que fizemos na produção cinematográfica, sob a direção de André Klotzel.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis cria um autor-personagem, ou mais precisamente, um “defunto-autor”, que representa ao mesmo tempo a empírica e real (autor) e a entidade fictícia (narrador), que tem a incumbência de anunciar e elaborar o discurso.

Exibido no cinema brasileiro em 2001 o filme Memórias Póstumas de Brás Cubas, transfere o texto literatura para o domínio das telas cinematográficas, obtendo assim, um texto imagético, uma tradução filmica. O encadeamento das imagens de forma articulada e estruturada de maneira intencional através da montagem é que conduz e estrutura a narrativa no meio cinematográfico. Embora haja considerável esforço por parte do produtor para transcrever literalmente o texto literário para a tela do cinema, esta última trás em si, entre uma cena e outra, desvios e diferenças que são justificáveis, como na fala de WALTY e CURY, (1995, p.47)

“Quando um filme se inspira num romance, há sempre espectadores queixando-se das diferenças que, segundo estes, resultariam em emprobecimento, entretanto as diferenças são inevitáveis ao se transpor um texto de um código para outro. Na verdade, o diretor está “criando” um outro texto, ou seja, fazendo uma leitura no sentido produtivo que caracteriza este processo.”

Na essencial e indispensável peculiaridade na narrativa machadiana, o filme traz um narrador imagético que está presente de forma estratégica na figura de Brás-Defunto, característica esta visível pela maquiagem opaca e sinistra do autor, que compartilha sua presença por meio de uma comunicação direta com o espectador ao mesmo tempo em que é inexistente aos demais personagens do filme.

Para provar que a produção filmica é baseada na obra de Machado de Assis, o diretor dá ênfase na força do texto literário para compor o filme. Isto está claro quando o espectador ler no letreiro inicial as célebres palavras do livro: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu corpo, dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. (p. 3).

Aludindo a um fragmento da obra (...) Fui acompanhado ao cemitério por onze amigos (...) Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda (...), (p. 35). A condição existencial do narrador é mostrada na seqüência inicial do filme.

“Brás deitado no caixão é enquadrado por uma câmera sobre seu rosto. Fecha-se o caixão, em seguida a câmera mostra o cortejo fúnebre que se aproxima. As pessoas são acompanhadas pela câmera no exato momento em que o pseudo-narrador-fílmico, em off, fala do método que utilizou para compor memórias. De dentro do caixão a câmera enquadra o rosto do defunto que muda a visualização normal do espectador, que no plano seguinte passa a saber de quem é a voz, aí então, o pseudo-narrador-fílmico é enquadrado em primeiro plano e ao fundo estão as pessoas em torno do caixão, elas abrem seus guarda-chuvas quando caem os primeiros pingos d’agua”.

O texto imagético substantifica, torna real a necessária distância que existe entre o narrador e a cena narrada. Já na literatura, a proximidade ou não do narrador aos fatos é tecida à medida que a leitura vai avançando pouco a pouco e nunca são postas de maneira imperativa como faz o cinema. “A literatura tem uma validade intrínseca e é autônoma em relação às outras atividades do saber humano e do viver social.” D’ONÓFRIO, (2006, p. 22).

Ao tornar os fatos compactos, condensando-os, o cinema simultaneíza o que é necessariamente percorrido linearmente pelos olhos do leitor no livro. Tentando igualar o alcance da palavra e da imagem ao espectador do cinema, o pseudo-narrador-fílmico fala a todo tempo sem aparecer (em off), o que pode ser ilustrado pelo ponto em que:

“A câmara focaliza o Brás na cama. A imagem mostra ao espectador o desconforto do doente; girando para a esquerda mostra as pessoas presentes nos momentos finais de Brás e foca a senhora ao pé da cama.”

O que a imagem materializa através da câmera, o pseudo-narrador-fílmico, neste caso, o Brás, tenta alinhavar, ou seja fazer uma relação entre uma cena e outra, estando mais uma vez em off.

“Assistiram a minha partida umas quatro ou cinco pessoas, entre elas, uma senhora. Estavam lá o médico da família, o amigo meu que viram falando no meu enterro, uma piedosa vizinha e uma senhora...daqui a pouco vou dizer quem era a tal senhora, que simplesmente não podia acreditar na minha extinção.”

Tais seqüências nos arremetem ao primeiro capítulo onde trata do óbito do autor, mantendo a seqüência cronológica literária, retrocedendo da visita desta senhora à causa da enfermidade. A terceira senhora que o narrador-defunto-fílmico, demora tanto para revelar ao espectador desde o início da obra, é o objeto do seu amor que dá sentido ao enredo. Daí em diante, Brás em off esclarece a causa de sua morte revelada por imagem através das câmeras que se posicionam em vários ângulos.

O livro é rico em intertextualidade, e faz alusão a uma diversidade de nomes ilustres da história da humanidade, da literatura, da mitologia, da Bíblia. Pode-se ler alguns exemplos como: “Que Moisés que também contou sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo (p.35). Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo” (p.49). No capítulo VII, O Delírio, (p. 44) há uma referência à Ilíada, do poeta épico Homero (séc. IX ac.). Xanto um dos cavalos do herói Aquiles, recebe da deusa Juno o dom da fala e prediz a morte próxima do guerreiro.

Em Um Episódio de 1814, capítulo XII. (p. 57) existe uma referência ao poeta português Manuel Maria Barbosa do Bocage (1765-1805): repentista privilegiado, que ficou conhecido por seus poemas líricos e satíricos.

Já Sem Remorsos, capítulo CXXIX, (p. 208) faz mais uma referência a Ilíada de Homero em que o guerreiro grego Aquiles mata Heitor e arrasta o cadáver em volta das muralhas de Tróia, até que as súplicas de Príamo, rei de Tróia e pai de Heitor, convencem-no a restituir o cadáver.

Nestas considerações finais, podemos inferir que a literatura capta o que não se pode alcançar com os olhos, mas constrói em palavras tudo aquilo que pode ser reformulado através da própria linguagem. A partir daí, então, é que a realidade visual passa a se projetar na cabeça do leitor. O cinema faz uma seleção do que é visível criando uma comunicação que transcende à objetividade, porque a imagem para ter significado deve ser traduzida para o espectador e não apenas decodificada.

A obra de Machado de Assis é contundentemente construída numa mistura de textos que já existiam de antemão, mistura esta que produz relações intertextuais e intersimióticas, que são de importante e elevada significância entre vários discursos que acaba dando ao leitor uma nova visão de expectativas literárias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 2 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967.

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do Texto: prolegômenos e teoria da narrativa. 2 ed. São Paulo: Ática, 2006.

PAULINO, G. WALTY, I.; CURY. M. Z.. Intertextualidades: teoria e prática. Belo Horizonte: Lê, 1995.

Joilton Cardozo
Enviado por Joilton Cardozo em 01/08/2010
Código do texto: T2412715