Com a cara no mundo
Quando nasci fui recomendada solenemente, encarnaria em anjo o meu demônio, e caminharia em orlas ardentes. Seria de mim mesma a paz e desassossego, e não me veria pronta nunca, mas pelas pontas rutilantes das minhas palavras arranharia e seria arranhada na alma e na carne.
Quando meu primeiro choro salgou a pele, tive a sensação de primeira chuva, e na primeira
chuva meu primeiro choro.
Rasguei os estatutos e quebrei as normas, não me cabem regras se não me amoldo ao barro dos eretos e não vergo aos estilhaços da fala.
Fui consagrada na homília dominical e rompi o círculo das cabalas. Sou um corpo iniciado nas mandalas, circunscrevendo meu próprio espaço.
Me coloco na pira em que ardo incessante por que sou de mim; salvação em holocausto.
Não comungue comigo na mesma patena, há de ter nela o meu sangue vertido em pecado.
Consagra a sua oferenda a rebeldia dos insensatos e se eu for aceita; terei em mim o seu pecado original, a Gênesis em essência.
Quando escancarei a cara no mundo profanei os tabernáculos e oráculos, botei o pé na profecia.
E bem antes que me dessem a chaves da existência eu já rompia com a exigências; para me fazer carta e cartilha nesse jogos que se jogam as avessas.
Se nos púlpitos da excelsa divindade eu me adorar, saiba que neles fui cuspida e cabalmente concebida.
Adentrei a vida pela margem oposta, segui sendas nem sempre muito sacras; sou quebra-cabeça e caleidoscópio, em constante mutação. Essa sou eu; mil vezes renascida, sutilmente escarrada na sua porta de entrada.